Não sei se é o período de isolamento social, se é a incerteza quanto ao futuro, ou mesmo se é a idade passando de fato, mas começa a me faltar paciência para com o futebol, especialmente o brasileiro. E os acontecimentos recentes no RN e, principalmente no RJ, estão a ponto de esgotar meus últimos estoques desse ativo que já anda tão em falta no dia-a-dia.
Esse caso do RJ então é de lascar. Olha-se muito para dinheiro e quase nada para a credibilidade ou a própria imagem. Não vou nem falar em humanidade, empatia porque já está muito claro que isso anda em falta crônica.
Como é que um clube como o Flamengo mete os pés pelas mãos como fez nos últimos dias? Se o Flamengo, que está em condição muito melhor do que os outros, consegue fazer a patacoada da dimensão que acompanhamos nos últimos dias, dá bem para imaginar para onde o futebol brasileiro está indo.
Para quem esteve desligado do que andava acontecendo no mundo do futebol, o que é bastante recomendável para a saúde mental pelo que se viu nesse episódio, o Flamengo andava numa briga com a Globo para aumentar o valor de cota de seus direitos de transmissão. Resolveu que valia bem mais do que normalmente recebia. Foi o único do Campeonato Carioca a não assinar o contrato de transmissão.
Aí veio o cão atentar, trazendo uma pandemia que tirou o público dos estádios e até interrompeu treinamentos. O Flamengo passou a lutar pela volta urgente do estadual. Conseguiu. Correu a convencer o presidente do Brasil a publicar uma medida provisória sob medida para ele, algo execrável sob o ponto de vista do Direito Administrativo, que repudia o ato concreto, visando pessoa determinada. Isso para nem falar na total ausência de relevância e urgência da questão, requisitos essenciais de uma medida provisória.
A medida provisória deu ao mandante o direito exclusivo de transmitir os jogos. Assim, sem qualquer discussão com os maiores interessados - os próprios clubes e as emissoras de TV. Detalhe é que existia lei e modelo regrando isso no Brasil. Outro detalhe não menos importante é que há contratos em vigor e a lei não retroage para atingir o ato jurídico perfeito. Mas não quero discutir esses conceitos legais para não desvirtuar o objetivo deste texto.
O Flamengo achava que alguém iria querer neste momento de crise financeira transmitir seus jogos do empolgante Cariocão pelo valor pretendido. Achou mesmo que ia se acertar com a Globo, também inserida na crise, nos valores que ele entendia merecer. Nem uma coisa, nem outra. Foi obrigado a partir para a transmissão na internet com a estrutura que se espera do clube que ocupa a posição 1 no Brasil.
A arrecadação não chegou na casa do milhão, segundo apuração jornalística, mas houve quem anunciasse que ela teria chegado a R$ 10 milhões. No jogo seguinte, a prova de que a coisa ficou mesmo muito longe dos R$ 10 milhões: o clube resolveu fechar sua transmissão para seus sócios e para quem quisesse pagar R$ 10 pelo jogo. Quem arrecada R$ 10 milhões com um jogo sem graça de encerramento de fase precisa mesmo cobrar R$ 10 por uma semifinal?
Para piorar, o retrato claro de quem não se preparou para o que desejou: escolheu uma plataforma conhecidamente problemática, a Mycujoo (torcida do América sabe bem do que estou falando), e quem pagou não conseguiu acesso. Resultado: teve que abrir o jogo de última hora.
Esse foi só o festival de patacoadas em relação à administração. No campo jurídico, o Judiciário do RJ resolveu colaborar e uma liminar rasgando o contrato existente entre Globo, Ferj e demais clubes do RJ permitiu essas transmissões do Flamengo com clubes que haviam cedido seus direitos à Globo.
Mas o melhor ainda estava por vir. Como a final teve o mando de campo dado por sorteio ao Fluminense, o Flamengo então decidiu que a medida provisória feita sob medida para ele não deveria valer mais, e correu a buscar na justiça desportiva autorização para também transmitir o jogo.
Gente, eu até me recuso a falar sobre justiça desportiva porque sempre digo que ela não passa de um faz de conta, sem qualquer rigor jurídico em suas decisões que possam permitir a essa invenção brasileira se atribuir o nome de justiça. Mas ontem o negócio atingiu outro patamar: o TJD do RJ entendeu que pode julgar questões que envolvem direito civil e que nada dizem respeito à prática do futebol e deu ao Flamengo permissão para a transmissão!!! Eu nem consigo mensurar o tamanho desse absurdo jurídico, sem dúvida um recorde possivelmente não alcançável por um bom tempo dentre as atrocidades em que costumamos ver a tal justiça desportiva brasileira envolvida. Até o STJD correu a dizer o óbvio, que não cabia tal assunto à seara desportiva, numa tentativa de minimizar a vergonha institucionalizada.
Isso já estourou a boca do balão para mim. Mas aí vejo hoje de manhã que o treinador do Flamengo falou que o Fluminense jogou para não perder. E o que o Flamengo fez para vencer, então? Por que se o Fluminense jogou para não perder e não perdeu, a estratégia foi acertada, não é verdade? Afinal, quem ficou com a taça ontem, sem qualquer erro de arbitragem, foi o time que jogou para não perder. Não bastasse tudo que ocorreu fora de campo, ainda termos que aguentar treinador que não sabe lidar com derrota e vem com esse tipo de lorota passar vergonha em entrevista pós-jogo é extrapolar demais o meu limite.
Enfim, tudo isso foi dose para leão. Qual esperança eu posso ter de que o futebol brasileiro vai deixar de passar vergonha? A paciência está se esgotando.
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