Segue o prazeroso texto de Vicente Serejo, abrindo sua coluna Cena Urbana de ontem (página 3 do primeiro caderno da Tribuna do Norte), como verdadeira recomendação de sua leitura diária na Tribuna do Norte, seja na edição física, seja na edição digital.
Diário da Quarentena - LXXIX
O enigmático leitor JLM, no mais das vezes, é certeiro e instigante, mas desta vez foi injusto com o cronista. Injusto, aliás, não seria o mais adequado. As ideias, quando livres e livremente expostas, e sem má fé, não são justas ou injustas. Opinam. Nunca disse que o jet é inútil. Primeiro, por um princípio: tudo se presta a alguma coisa. Depois, a humildade manda reconhecer que o glamour social é um rico laboratório para se observar a arte da dissimulação.
Nesse sentido, é real que o jet, filho decaído das velhas nobrezas erguidas sob o palor e o calor das riquezas, tenha um mérito na economia das trocas simbólicas: o de descobrir que é inconveniente ser verdadeiro em tudo. Cansa, quando não deforma-se em um tipo insuportável e não recomendável na vida em sociedade. A principal qualidade dos cavalheiros e damas nos torneios sociais é a simpatia. E ninguém consegue ser bem simpático sendo muito verdadeiro.
A genialidade de Eça de Queiroz não está no gesto de apontar toda a beleza da nudez, mas de recomendá-la ser vista através de um manto diáfano feito de fantasia. Se a realidade do autor de 'A Cidade e as Serras' tivesse sido a nudez absoluta, nua e crua, provavelmente teria passado sem realce para os olhos humanos. Ele é genialmente ambíguo quando veste a nudez sem roubar a transparência, e diz: 'Sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia'.
Claro que o jet, tal como o temos, não chega ao nível eciano da abstração. Seria exigir muito, se não tem raízes na velha e autêntica fidalguia, mas no chão semovente e prepotente da abastança, natural ou adquirida, por dote, herança de sangue, cama e mesa. Nem assim pode ser visto como um herdeiro bastardo. Geralmente são habilidosos e embranquecem o espírito no perfume translúcido da literatice. Não é literatura, mas o perfeito simulacro de um falso brilho.
É da sua natureza saber financiar a própria glória, afinal não inventou o mercado persa que tudo vende a quem deseja comprar. São exímios malabaristas do silêncio e nele escondem o que não seriam capazes de mostrar, jejunos intelectuais que sabem ser. E nada é mais fiel à tintura do falso do que o silêncio que parece enobrecê-los como se fosse reflexão. E o jet nesse sentido é perfeito, embora nada revele como grande saber, justo por ser incapaz de perscrutar.
Por tudo e por mais que o corrido espaço de uma crônica não deixa discutir, não diria, pois, que o jet é inútil. Há quem tenha inveja da desenvoltura com que transitam e traficam a dissimulação. Há deles tão adestrados que até parecem os velhos e fidalgos espadachins dos clássicos romances de capa e espada. As damas? Ah, as damas! São impagáveis. Espetam aqueles que sabem que estão vendo tudo, mas simulam não perceber. São todas maravilhosas.
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