terça-feira, 14 de julho de 2020

A nova dentadura

Não faz muito tempo as eleições eram um espetáculo deprimente de distribuição de dentaduras, colchões, óculos, sacos de cimento e o que mais pudesse servir de mimo para o(a) eleitor(a) com o intuito de lhe deixar grato(a) pelo resto da vida, ainda que esse resto da vida fosse só até o fim da eleição corrente.

A Constituição e toda a legislação mudaram o rumo das coisas, tendo sido dado ao Ministério Público um papel de verdadeiro fiscal da lei, o que vem impedindo esse festival, ou pelo menos impedindo que ele seja feito de forma escancarada.

Só que 2020 é ano de eleições municipais e especialmente prefeitos Brasil afora encontraram uma oportunidade única de trazer a política da dentadura de volta, agora com uma nova roupagem: a distribuição de medicamentos na pandemia, agora com a chancela de medida oficial.

Fossem os medicamentos referendados cientificamente, eu nem estaria escrevendo este texto, vez que a ação estaria alinhada com a luta para enfrentar a Covid-19. 

Infelizmente não é esse o caso. A distribuição voltou-se para três medicamentos, inicialmente azitromicina (que é um antibiótico e, como tal, combate bactérias, não vírus ou coronavírus, como é o caso do Sars-Cov-2, causador da Covid-19) e cloroquina/hidroxicloroquina (usada em doenças autoimunes com muito cuidado por ter efeitos colaterais perigosos e mais frequentes e que estudos já provaram não ser eficiente para combate/prevenção em relação à Covid-19). Agora, as baterias se voltam para a ivermectina, um vermífugo, em essência.

A desculpa é de que teria funcionado in vitro. Muita coisa funciona in vitro. Água sanitária deve funcionar in vitro. Álcool em gel também. Água e sabão, idem. Funcionar in vitro significa colocar uma substância diretamente no vírus para combatê-lo. O vírus, portanto, está fora do corpo humano e, nessa situação, acho que até uma chinelada bem dada deve funcionar. 

Dentro do corpo humano a coisa muda de figura. Como fazer a dosagem correta para combater o vírus? Como fazer essa dosagem chegar intacta até o vírus após passar ou pelo sistema digestório, ou por absorção pelo músculo, ou por introdução venosa? Como fazer essa dosagem seguir intacta após metabolização no fígado? Cientistas já afirmaram que a dosagem necessária de ivermectina para a tão propalada prevenção utilizando como parâmetro o que funcionou in vitro seria tão gigante que atacaria sem piedade o fígado, o que levaria a pessoa à morte. Não à toa, a ivermectina nem chegou a evoluir para estudos no combate ao Sars-Cov-2. Parou por aí mesmo.

Mas o ser humano não aceita não ter solução. Basta ver o quanto as farmacêuticas lucram todo ano com remédios para gripe, outra causada por vírus, quando na verdade eles não combatem a gripe em si, apenas seus sintomas (dor de cabeça, nariz entupido, febre). Aliás, há mais de 100 anos tivemos o surgimento da gripe numa pandemia muito semelhante à atual. Nunca houve remédio para prevenção/combate ao vírus. Até a vacina tem que ser renovada anualmente.

E por que insistir na distribuição de um remédio que não vai surtir efeito? Elementar, meu caro Watson. As estatísticas mostram que 80% dos que são acometidos da Covid-19 terão sintomas leves ou levíssimos e vão se recuperar sem qualquer necessidade de atendimento médico. Isso para não falar nos assintomáticos. Dos outros 20%, que vão desenvolver os sintomas mais graves e precisarão de atendimento/internação hospitalar, em torno de 5% vão evoluir para o óbito.

Ora, nessa conta, temos 80% de retorno de satisfação com a ivermectina, que são as pessoas que já não evoluiriam mesmo para a forma mais grave e tomaram um lindo placebo. Na hora do desespero, quantos não serão "eternamente gratos" (pelo menos até o fim da eleição de novembro) pela medicação distribuída nas prefeituras? 

Ninguém nem se preocupa com o uso indiscriminado de uma medicação para combater vermes e piolhos e o possível desenvolvimento de uma geração mais resistente dessas pragas num futuro próximo, algo que já vivemos com as bactérias pelo uso indiscriminado de antibióticos. 

É triste acompanhar o sofrimento humano sendo explorado dessa forma, trazendo à tona um velho vício de quando política e demagogia dormiam e acordavam juntas e as verbas públicas seguiam descaradamente para financiar a campanha dos candidatos oficiais. Uma pena que a pandemia sirva de justificativa para essa volta ao passado das campanhas eleitorais.

Teremos muitas contas a acertar quando isso tudo passar, mas nossa vergonha... essa estará para sempre registrada na História. 

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