terça-feira, 21 de julho de 2020

Peso devido

Sabem por que é tão difícil denunciar casos de estupro e/ou violência, especialmente no âmbito doméstico? Porque são crimes que normalmente não deixam testemunhas e a investigação começa num duelo de quem tem mais credibilidade - a vítima ou o agressor.

Temos no Brasil tipo penal específico para casos em que alguém denuncia haver crime que sabe inexistente. É a denunciação caluniosa, afora o alcance do bolso com as indenizações por danos morais. 

Isso deveria ser suficiente para que a palavra da vítima fosse um pouco mais valorizada na hora de denúncias do tipo, mas não, o que pesa mesmo ainda é a desigualdade de gênero. Ora, normalmente a disputa é mulher x homem. Aí já sabemos de antemão de quem é a culpa, ainda que de fato existam os crimes por ela denunciados. Afinal, foi ela que não se deu o valor, foi ela que se envolveu com quem não devia, foi ela que usou uma roupa mais insinuante, e seguem as desculpas ultrajantes que mais uma vez agridem e humilham a vítima, fazendo o agressor duas vezes vencedor.

Vejo na Tribuna do Norte de hoje (página 16) matéria sobre uma denúncia de violência doméstica contra um jogador de clube aqui do RN.

Na reportagem, há até o relato de que outras mulheres corroboram a veracidade do comportamento agressivo dele, inclusive quando defendeu outro clube daqui em passado recente.

Nas redes, eu me assustei com opiniões que colocavam em dúvida as acusações feitas pela vítima. "Por que demorou tanto?" é a mais lembrada e talvez a que mais exemplifique o que citei acima sobre a vítima sofrer duas vezes. Alguém duvida que toda vítima desse tipo de crime viva um dilema antes de denunciar o que dificilmente é testemunhado, ciente do achincalhamento que vai sofrer e da desacreditação de sua palavra? 

Pior foi ler lá na TN um dirigente do clube dizer exatamente isto: "Atleta segue relacionado, vai para o jogo, é um atleta titular do clube. Não existe nada provado contra o atleta, existe uma acusação que o [clube] está iniciando um processo de investigação. A mulher que acusa tem que provar que o atleta cometeu esse ato, e ele se entender com ela na justiça. Quando envolve o [clube], a instituição precisa se posicionar. Temos que aguardar para não tomar atitudes precipitadas e até prejudicar o jogador." (grifos meus)

Eu não consigo nem descrever o que sinto ao ter que ler uma coisa dessa. A mulher tem que provar? Depois não entendem a chaga incontrolável que é a violência contra mulheres, especialmente no âmbito doméstico. A polícia é quem vai investigar e averiguar com sua expertise se houve ou não o crime e em quais circunstâncias. 

E não tomar atitude precipitada num caso desse é não menosprezar as denúncias. Não prejudicar o atleta denunciado e o clube é afastá-lo até que tudo se esclareça para que o clube não veja sua imagem atrelada a um crime da pior forma possível: endossando o suposto agressor.

Se lá na frente ficar provado que a vítima nunca foi vítima, aí sim tanto o atleta acusado como o clube podem "se entender com ela na justiça", seja na seara cível, seja na seara penal, como já citado. 

Você pode ter estranhado o fato de eu não ter citado uma única vez o nome do clube, do agressor, da vítima. Foi proposital. Esse caso não é o primeiro e infelizmente não será o último. Mas a repetição do padrão é realidade que serve para o clube do RN, o clube de SP, o clube de qualquer rincão deste país, o vizinho da rua de trás, do apartamento de cima, do casebre na favela. Nominar seria apequenar algo gigantescamente observado neste país continental. 

Meu intento é que esse padrão deixe de ser padrão da sociedade, não apenas do clube X. Crimes existem porque o criminoso decidiu agir contra a lei. Se essa intenção não existisse, não haveria escolha errada de relacionamento, de roupa ou de qualquer coisa vergonhosamente atribuída como culpa da vítima que resultasse no ilícito. 

E um passo enorme para romper esse padrão é reconhecer o machismo direcionado às vítimas desse tipo de crime e passarmos a dar às coisas o peso que elas deveriam ter. A vítima de estupro/violência, especialmente no âmbito doméstico, é vítima até que se prove o contrário, quando então passará a enfrentar a lei. Até lá, suas afirmações têm que ser levadas a sério para que o comportamento de quem agride (e aqui falo de todos os outros que praticam esse crime Brasil afora, não apenas do acusado específico) seja desestimulado, recriminado e reconhecido como algo que faz mal à sociedade como um todo. O contrário é o que vemos hoje: verdadeiro estímulo/aplauso ao agressor.

Ninguém merece isso. Nem a vítima, nem o clube endossante que arranha sua própria imagem, nem o suposto agressor, que enfim pode sim ser inocente, mas restará aplaudido pelo crime que não cometeu. 


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