Eis a parte derradeira do interessante relato de Roberto Pompeu de Toledo a respeito da intimidade do Supremo Tribunal Federal publicado pela revista Veja na edição de 16 de maio de 2018. Clique para entender o relato completo: parte 1, parte 2, parte 3, parte 4, parte 5, parte 6, parte 7.
A sala do ministro Edson Fachin, cheia de livros, lembra uma livraria . Não pelas estantes que percorrem de ponta a ponta a longa parede, mas pela mesa que, suportando pilhas e pilhas de livros, replica as mesas em que as livrarias expõem os últimos lançamentos. O ministro diz que a trabalheira tem sido tão grande que lhe falta tempo para ler. Como dizer que não tem lido, com tanto livro sobre a mesa? "Ah, mas são todos de direito penal." Na atividade acadêmica não é essa sua especialidade. "Eu me casei com o direito civil, mas aqui me vi obrigado a mudar a relação jurídico-afetiva para o penal".
Fachin foi nomeado para o Supremo, pela presidente Dilma Rousseff, em junho de 2015, para preencher a vaga de Joaquim Barbosa, e desde então a política bate à porta de seu gabinete. No impeachment de Dilma foi relator do recurso com que o governo tentava invalidar atos da Câmara (negou-o). Veio em seguida a crise fiscal dos estados, e viu-se numa reunião com nove governadores. "Essa reunião deveria ter sido do outro lado da rua, não era matéria para o Judiciário resolver." Com a morte de Teori Zavascki, herdou-lhe a relatoria da Lava-Jato. Que sensação experimentou quando lhe caíram sobre os ombros os mais decisivos processos dos dias que correm?
"Vou lhe responder de outra forma. Outro dia um ex-aluno veio me visitar e perguntou se eu estava feliz. Respondi: estado de felicidade, nos tempos atuais, é um querer excessivo. Estou satisfeito. Satisfeito no sentido de que me propus a mudar da Primeira para a Segunda Turma, para substituir o ministro Teori, fiquei por sorteio com os processos, e um conjunto de ações nos últimos meses permite que seja otimista quanto aos resultados."
Apesar da reação em contrário dentro do Supremo?
"Os pilares fundamentais da Lava-Jato estão de pé: execução em segundo grau, apesar de todo o seu aspecto controvertido, o valor jurídico das delações premiadas e a importância de manter as prisões preventivas, observados certos limites. Você indagaria: vai ser mantido o tripé? A maioria do plenário aponta nessa direção."
Fachin identifica uma transformação da percepção das pessoas com relação ao Supremo e à Constituição: "Quando eu era estudante, na década de 70 e um pouco na de 80, pouco se falava do Supremo, e a Constituição era vista num plano de cidadania idealizada. Os nós que a Constituinte não desatou ficaram para o Judiciário. O deslocamento da política para o direito é isso: uma tentativa de desatar os nós em que não houve vencedores. Chegou-se a um impasse, e alguém precisa desatá-los".
O ministro tem outro compromisso, a conversa se encaminha para o fim. Última pergunta: e as ameaças que revelou terem sido endereçadas a ele e à família? Resposta: "A presidente tomou providências e está tudo sob controle". É tudo o que o senhor pode dizer? "Sim, tudo."
Nossa maratona de entrevistas se encerrará com o decano Celso de Mello, em seu gabinete, no 6.º andar do Anexo II. O ministro, previsivelmente, marcou para as 8 da noite. As noites são suas companheiras; ele as atravessa compulsando os livros e tomando notas. Três horas de sono lhe bastam. O aparelho de som toca música clássica (Chopin, Sonata para Piano N.º 2). O ministro combina prodigiosa erudição com prodigiosa memória. Lembra-se da única ocasião em que encontrou o visitante, 25 anos atrás, da pergunta que lhe fez e da resposta que deu.
Diz que conheceu Cármen Lúcia pelos livros de direito público, inclusive constitucional, de que é autora. Sempre a admirou, e ao lê-la pensava que poderia vir a fazer parte do tribunal. "Saíram notícias de que eu estaria estremecido com ela, mas não é verdade. Apenas lhe falei, com cuidado, sobre a necessidade de votarmos a ação sobre a aplicação da pena depois de condenação em segundo grau." Celso de Mello cita um professor na Faculdade de Direito da USP, Luís Eulálio de Bueno Vidigal. "Ele falava da 'indeclinibilidade' da prestação jurisdicional. É preciso dar resposta às demandas."
O decano, assim como Marco Aurélio, é contra a prisão antes que se esgotem as quatro instâncias recursais. Cita o artigo 393 do Código de Processo Penal (hoje revogado), que prescrevia "prisão imediata" do condenado, e o decreto-lei 88, editado quarenta dias depois de inaugurado o Estado Novo, que criava o "Tribunal de Segurança Nacional" e imputava ao réu o ônus de provar a inocência. São aberrações que se devem evitar. "A regra de prisão só depois do trânsito em julgado, em que nossa Constituição repete as da Espanha e da Itália, é antídoto contra arbitrariedades."
Conversar com Celso de Mello é abrir-se a uma catadupa de raciocínios e argumentos sobre questões atuais, reminiscências, episódios históricos, uma questão levando a outra, às vezes um enunciado conduzindo a desvios que conduzirão a outros desvios antes de fazer o caminho inverso para se engatar às premissas que os motivaram. A mesa em que estamos fica no fundo da sala; há livros em cima dela, na estante ao lado e em outras mesas, mais afastadas. O ministro pega um livro, lê um trecho, pega outro e pede ao interlocutor que leia o artigo de lei para o qual aponta. Às vezes levanta-se para pegar um libro mais distante e o faz com dificuldade. Está com um problema na ponta do fêmur que lhe atrapalha os movimentos. Para caminhadas mais longas, socorre-se de uma bengala. Uma cirurgia não resolveria o problema? "Sim, mas eu teria de parar de trabalhar por dois meses, e isso prejudicaria o tribunal."
Para Celso de Mello o trabalho é a vida e a vida é o trabalho. Sua rotina é ir de casa para o Supremo e do Supremo para casa. Ele não vai a festas nem frequenta palácios. "Agradeço os convites, mas não vou." Quando estudante, assistiu a uma palestra em que o então desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo José Geraldo Rodrigues de Alckmin (depois ministro do Supremo) discorreu sobre a vida de juiz. "Juízes, especialmente no interior, são muito requisitados por prefeitos, vereadores, delegados de polícia. Não vá, nos dizia o desembargador Alckmin. Se for impossível recusar o convite, aplique a regra dos três 'S': saudar, sorrir e sumir."
Já passa das 22 horas. Um assessor aproxima-se para lembrar que termina às 23h59 o prazo para votar em matéria pendente no plenário virtual. No plenário virtual, em que os ministros operam na tela do computador, as votações iniciam-se à zero hora de uma sexta-feira e se encerram às 23h59 da quinta-feira seguinte. Celso não se apressa. Ainda discorre sobre os ministros que mais tempo ficaram no tribunal, no período republicano. O mais longo período foi o de Hermínio do Espírito Santo - 29 anos, onze meses e 24 dias. O segundo, o de André Cavalcanti - 29 anos e oito meses. E o terceiro já é Celso de Mello. Ele está perto da primeira colocação. Aos 72 anos, sobra-lhe tempo para conseguir alcançá-lo. Tentará fazê-lo? "Não sei..." Faz uma expressão de cansaço. "Com esse problema na perna..."
Nesta noite, 26 de abril de 2018, esta unanimidade entre os colegas que é Celso de Mello, considerado esteio moral do Supremo, está completando 28 anos, oito meses e nove dias no cargo. À saída, a Praça dos Três Poderes está deserta, e a dama de pedra, condenada ao plantão perpétuo como guardiã dos guardiães da Constituição, cumpre seu solitário dever com ares mais desamparados do que nunca.
NOTA: quatro ministros não foram entrevistados para esta reportagem. Rosa Weber tem por princípio (respeitável) não receber jornalistas. Marco Aurélio se diz temporariamente fechado à imprensa. Ricardo Lewandowski e Alexandre de Moraes não responderam ao pedido de entrevista.
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