sábado, 14 de julho de 2018

Por dentro do STF - parte 5

E vamos seguindo no relato publicado pela Veja sobre o Supremo Tribunal Federal na intimidade. Clique para ler as partes anteriores: parte 1, parte 2, parte 3 e parte 4.

III
As palavras e os atos

Vênia é uma palavra de uso particular e exclusivo de uma comunidade. Significa licença, permissão, e também favor, perdão. Tem origem no latim e gera adjetivo "venial", usado em "pecado venial". Quem fez a primeira comunhão sabe que o pecado venial é leve, perdoável com um par de pai-nossos, enquanto o pecado mortal exige penitência severa. No mundo, vasto mundo de fora dos tribunais, não se pede vênia para avançar quando outra pessoa obstrui uma passagem, nem quando se deseja introduzir a opinião numa conversa entre amigos. No mundo paralelo dos tribunais estão banidos a licença, o por favor, o desculpe. Tudo são vênias. "Vênia" é a rainha das expressões características do meio. Alguém com paciência de contar verá que é a mais pronunciada, entre os obrigatórios rapapés linguísticos, mas há outras, vossa excelência, eminente ministro, douta procuradora, nobre advogado, que configuram uma espécia de atualização das regras do amor cortês dos poetas medievais para o universo dos juízes, promotores e advogados. Às vezes ribombam no ambiente um "colenda turma" ou um "pretório excelso". Vamos ao dicionário. O adjetivo "colendo", segundo o Houaiss, significa "digno de acatamento e veneração; respeitável, venerando". "Pretório" era o lugar em que o pretor (magistrado romano) exercia suas funções, e "excelso" é o que está no céu, elevado, sublime. Pronunciados por ministros, "colenda turma" e "pretório excelso" são autoelogios.

Alguns dos atuais ministros são mais afeitos a mesuras linguísticas, outros menos. Celso de Mello e Lewandowski são mais; Luís Roberto Barroso e Cármen Lúcia, menos. Prestando atenção às miudezas as sessões plenárias, colecionam-se outras idiossincrasias. Lewandowski constuma recostar-se na poltrona como quando o avião já decolou e o passageiro liberta-se da posição vertical. Barroso faz o movimento contrário e inclina-se em direção à tela do notebook. Quem mais abandona a sala é Gilmar Mendes, às vezes por longo tempo. Quando os ministros se aprestam a sentar-se ou levantar-se, seus respectivos valetes (vá lá a expressão; estamos num recorte do mundo das cortes) puxam e empurram as poltronas. " Eu não", protesta Luiz Fux. "Pode reparar: não deixo, meu auxiliar está avisado." Barroso defende que a ajuda é necessária, para evitar que a toga fique presa na cadeira. O profissional que chamamos de valete é popularmente conhecido como "capinha", tanto por portar uma capa sobre os ombros quanto pela função de ajeitar a toga do juiz a seu encargo. Mas não vá alguém chamá-lo de capinha; ele prefere a dignidade do título "auxiliar de plenário". Cada ministro tem o seu. Minutos antes de começar a sessão, os auxiliares de plenário se põem em cena. Trazem os livros, o notebook e outros apetrechos dos respectivos ministros. O lugar de Celso de Mello é o que ficará mais cheio de livros. A movimentação dos auxiliares a afinar as coisas pode ser comparada, com algum exagero, à afinação dos instrumentos antes do concerto. Não só os auxiliares, mas qualquer um que suba ao tablado em que ficam a mesa da presidência e as bancadas dos ministros deve ter uma capa nas costas.

As fileiras das poltronas reservadas à assistência dividem-se em três blocos. Os da direita e da esquerda são reservados ao público em geral e o frontal à mesa da presidência, aos advogados. Na parede atrás da presidência veem-se uma bandeira brasileira enrolada, o brasão da República e, desrespeitando a variedade e igualdade de crenças na sociedade, um crucifixo. Toca a campainha, às 14 horas (ou um pouco mais tarde, o Supremo não é bom cumpridor de horários),e entram os ministros, a presidente puxando a fila, os demais por ordem de antiguidade, o decano em primeiro. Três mulheres sentam-se atualmente à mesa que comanda a sessão: Cármen Lúcia no meio, à sua direita a procuradora-geral Raquel Dodge e à esquerda a assessora de plenário da presidente, Doralúcia dos Neves Santos. Apregoado o processo a examinar, a palavra é cedida ao relator, ao qual se sucederão os demais ministros na ordem do mais antigo ao mais novo. No meio da tarde, a sessão é interrompida para um intervalo que pelo regimento deveria durar meia hora mas dura mais. Que fazem os ministros ao recolher-se aos bastidores? Aproveitam a interrupção para o gargarejo, como os cantores? Alongam o corpo, como os bailarinos? A resposta é banal: concentrados no Salão Branco, atrás do plenário, alguns se sentam à mesa do lanche, outros recebem advogados para breves consultas, outros ainda tiram fotos com ex-alunos.

O diretor-geral do STF é Eduardo Toledo, moço ainda, talvez menos de 40 anos. Funcionário concursado, aos 25 anos iniciou-se no gabinete do então ministro Sepúlveda Pertence (hoje, de volta à advocacia, engajado na defesa do ex-presidente Lula), e quando Pertence se aposentou, em 2007, passou ao gabinete de Cármen Lúcia. Em 2014 deixou o tribunal para advogar e em julho de 2016 voltou, a convite de Cármen, que assumia a presidência. "Foi um convite irrecusável", diz. O STF, informa Toledo, tem 1.150 funcionários concursados e de 1.500 a 1.700 terceirizados. Os gabinetes dos ministros contam com 35 a quarenta assessores. Até oito deles os ministros podem trazer de fora; também podem recrutar até três juízes auxiliares, dos quais se falará adiante. O Brasil tem ao todo 91 tribunais, entre federais, estaduais e os dois tribunais de contas municipais, os únicos existentes (em São Paulo e no Rio de Janeiro). Haja gente para falar data venia. Entre os tribunais superiores, a estrutura do STF é das menores. O orçamento de 2018 prevê gastos de 714 milhões de reais, contra 1,5 bilhão para o Superior Tribunal de Justiça, outro 1,5 bilhão para o Tribunal Superior do Trabalho e 2,4 bilhões para o Tribunal Superior Eleitoral. Só o Superior Tribunal Militar, com 550 milhões, fica atrás dele. A TV Justiça, no ar desde 11 de agosto de 2002, consome 50 milhões do orçamento. Antes dela, houve uma única sessão do Supremo transmitida ao vivo pela TV, a que apreciou - e negou - recurso do então presidente Collor contra procedimentos da Câmara no processo de impeachment.

A possibilidade de os ministros contarem com juízes auxiliares foi introduzida no regimento do STF em 2007. Em 2009 foi sancionada lei conferindo-lhes poderes de conduzir atos de instrução do processo. Eles obtiveram, em particular, o poder de conduzir interrogatórios, o que representou ganho de tempo e de procedimentos. Antes era preciso remeter todo o processo ao juiz da comarca em que se encontrasse o depoente, e ao juiz, até então alheio a seu andamento, incumbiria estudá-lo a partir do zero. O juiz auxiliar, lotado no gabinete do ministro, acompanha o processo desde sua chegada ao tribunal. Para executar o trabalho, basta-lhe tomar um avião e ir ao encontro do depoente. Os juízes servem basicamente nos processos criminais, e ganharam importância na massa de trabalho que assolou a corte na ação penal 470, nome fidalgo do plebeu mensalão. A ministra Rosa Weber à época teve o juiz Sérgio Moro a auxiliá-la. Dos onze ministros, só Marco Aurélio prescinde de juiz auxiliar.

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