quarta-feira, 11 de julho de 2018

Por dentro do STF - parte 3

Segue o relato feito por Roberto Pompeu de Toledo sobre as entranhas do STF. Para conferir a parte 1, clique aqui; a parte 2, clique aqui.

II
A via da supremacia

A senhora de pedra que se põe à frente das colunas do Supremo Tribunal Federal está sentada. É curioso. Nas muitas estátuas da Justitia, como diziam os romanos, que se espalham nos fóruns e tribunais mundo afora, o comum é vê-la de pé - soberanamente de pé. Nossa dama estaria cansada? Ou insinua que, ao demandar aquela casa, o melhor é esperar sentado? Num devastador artigo publicado em janeiro, o professor da USP Conrado Hübner Mendes escreveu: "O tempo do STF é místico. A corte pode tomar uma decisão em 20 horas ou 20 anos". Entre as manipulações do tempo no tribunal estão os pedidos de vista que se eternizam, em desobediência ao próprio regimento interno da casa (e acabam se constituindo no equivalente judicial à obstrução praticada nos parlamentos), e as decisões monocráticas que, na demora da convalidação pelo plenário, criam uma situação apelidada pelos críticos de "ministrocracia".

Ao longo da história o Supremo foi mais submisso do que resistente ao poder político. Em abril de 1892, catorze meses depois de nossa primeira Constituição republicana, promulgada em 24 de fevereiro de 1891, conheceu seu primeiro caso rumoroso, ao julgar habeas-corpus apresentado por Rui Barbosa em favor de um punhado de oposicionistas presos pelo governo do marechal Floriano Peixoto. Vivia-se no Rio de Janeiro o estado de sítio decretado para fazer frente às agitações da chamada Revolta da Armada, e entre os presos figuravam parlamentares, jornalistas, escritores e militares. O tribunal negou o recurso, com um único voto a favor, o do ministro Joaquim de Toledo Piza e Almeida. Terminada a sessão, Rui Barbosa aproximou-se do dissidente, abaixou-se e pediu-lhe "o consolo de beijar a mão de um justo". O episódio rendeu a Floriano, o "Marechal de Ferro", uma de suas frases mais famosas: "Se os juízes dessem o habeas-corpus, não sei quem amanhã lhes daria o habeas-corpus de que precisariam".

À particularidade de a República ter sido "proclamada" por um militar, o Brasil viu acrescentar-se a instalação, nos períodos dos marechais Deodoro e Floriano, de um regime militar travestido de "governo republicano". Nos primeiros anos o Supremo Tribunal Federal foi composto dos mesmos integrantes do órgão equivalente no Império - homens idosos, cujas aposentadorias logo se sucederam. O (digamos) semiditador Floriano adotou a tática de não lhes preencher as vagas e assim manteve a corte convenientemente inoperante, dado que a lei exigia quórum mínimo para seu funcionamento. Getúlio Vargas foi mais direto, e inaugurou o ardil de decretar a aposentadoria dos ministros que lhe parecessem mais vacilantes no apoio do governo. Não adiantou ao ministro Godofredo Xavier da Cunha, então presidente do Supremo, ter mandado a Vargas, logo que vitoriosa a Revolução de 1930, telegrama em que augurava os "melhores votos" para seu governo. Seis ministros foram aposentados. Xavier da Cunha entre eles. O precedente seria aproveitado pelo marechal Costa e Silva, em seguida ao Ato Institucional nº 5, para aposentar os ministros Evandro Lins e Silva, Victor Nunes Leal e Hermes Lima. Em suas memórias (O Salão dos Passos Perdidos), Evandro Lins e Silva conta que a decisão foi chancelada numa reunião ministerial em que a certa altura Costa e Silva disse: "Aproveito a oportunidade...", e colocou as cassações na mesa. "Hermes Lima não se conformava com isso", prossegue Evandro Lins e Silva. "Aproveita a oportunidade para nos cassar? O sujeito aproveita a oportunidade para uma coisa boa, não é?"

Em 1971 o Supremo reuniu-se para apreciar uma representação do oposicionista MDB (nunca confundir, em princípios e métodos, com o partido que hoje ostenta o mesmo nome) contra o decreto do presidente Emílio Médici que estabelecia a censura prévia dos livros e periódicos, então apelidado "decreto da mordaça". Os ministros negaram o pedido, com uma única exceção: Adaucto Lúcio Cardoso, liberal da velha cepa que, antes de juiz, fora dos mais aguerridos quadros da UDN. Repetia-se o caso do herói solitário, como o protagonizado pelo ministro Piza e Almeida em 1892, e vai-se repetir uma cena teatral em plenário, desta vez não de iniciativa do advogado, mas do próprio ministro. Adaucto Lúcio Cardoso, derrotada sua tese, levantou-se, arrancou a toga dos ombros, jogou-a bruscamente na cadeira e deixou o plenário, para não mais voltar.

Os exemplos citados referem-se a períodos ditatoriais ou quase ditatoriais, em que a resistência seria inútil; os ministros trabalhavam com a espada pousada no pescoço. O período regido pela Constituição de 1946 foi de democracia e, como tal, os governantes eram eleitos e vigiam as liberdades. A espada não estava mais no pescoço, mas, reparando bem, estava na mesa, ao alcance da mão dos generais. A qualquer momento eles poderiam sentir-se tentados a empunhá-la. As investidas oposicionistas que levaram à crise e ao suicídio de Getúlio contaram com a rede de proteção dos militares. Outro militar, o general Henrique Teixeira Lott, ministro da Guerra, vai reger em seguida o entra e sai de substitutos de Getúlio (Café Filho, vice-presidente; Carlos Luz, presidente da Câmara; Nereu Ramos, presidente do Senado) e garantir a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek. Na renúncia de Jânio Quadros, militares vão opor seu veto à posse do vice, João Goulart, e concordar com ela só depois de acertada a implantação de um regime parlamentarista. Enfim, militares vão acabar com a festa ao depor João Goulart. Eles detinham a ultima ratio, o poder dos poderes, a  vontade sobre a qual nenhuma outra prevaleceria. Supremos eram eles, não o Supremo. E com isso chegamos à feição central dos dias que correm: hoje, supremo é o Supremo.

"Democracia e constitucionalismo são concepções políticas distintas", ensina Oscar Vilhena Vieira, diretor da Escola de Direito paulista da Fundação Getúlio Vargas, no livro Supremo Tribunal Federal - Jurisprudência Política, publicado em 1994. "À democracia importa, fundamentalmente discutir a origem e o exercício do poder pela maioria; já o constitucionalismo moderno, através da separação de poderes e de uma declaração de direitos, irá preocupar-se com os limites do poder, seja este exercido pelo rei ou pelo povo."

A arte de bem conduzir um governo dependerá da conciliação entre esses dois polos, tanto mais delicada porque, na segunda metade do século XX, se assistiu a uma ampliação do alcance das constituições. A Lei Fundamental adotada na Alemanha Ocidental do pós-guerra acrescentou, à proteção dos direitos civis de ir e vir, de expressão, de reunião ou de igualdade perante a lei (nascidos séculos atrás, na Carta Magna e na Revolução Gloriosa inglesa, depois nas revoluções francesa e americana), os direitos sociais de moradia, de alimentação, de educação, de saúde, de segurança pública, de cultura, de lazer. Assim, uma ação positiva, a de promover direitos, somou-se à tradicional ação negativa - "impor limites os demais poderes do Estado através do controle de constitucionalidade", escreve Vilhena. A Constituição italiana, de 1947, foi pela mesma trilha. Ambas se punham a serviço da construção do Estado de bem-estar social característico da Europa dos anos que se seguiriam.

A Constituição brasileira de 1988 acompanhou essa tendência. Em 2009 o Supremo julgou o caso de uma jovem do Ceará, portadora de rara doença degenerativa, que reclamava da prefeitura de Fortaleza o pagamento dos remédios de alto custo exigidos para seu tratamento. A decisão, que mostra o STF na função de promover direitos, foi favorável à jovem, com base no artigo 196 da Constituição - "A saúde é direito de todos e dever do Estado (...)" -, e abriu caminho para forçar o Estado a arcar, entre outros, com os medicamentos de combate ao HIV. Se o Estado alega que tais despesas não cabem no orçamento, o problema, ora é do orçamento.

A altiva posição do tribunal ignorava a questão crucial de que o Brasil não é a Alemanha. mas reafirmava sua primazia, amparada pela Constituição. A amplitude de um texto constitucional que pretende abarcar tudo multiplicou as atribuições e as responsabilidades do STF, pôs a nu suas carências, ao enfrentá-las, mas sublinhou seu poder. Ainda no plano social, o tribunal aprovou a união homoafetiva (2011) e criou um precedente para a descriminalização do aborto até os três meses de gravidez ao determinar como ilegais as prisões de um médico e uma paciente do Rio de Janeiro (2016). Na esfera política, impôs a fidelidade partidária, ao decidir que a vaga de deputado é do partido, não da pessoa de seu titular (2007), e derrubou, por inconstitucionalidade, a chamada "cláusula de barreira", que, aprovada pelo Congresso, exigiria um certo número de votos para que um partido tivesse representação na Câmara (2006).

Quando um partido é derrotado numa votação no Congresso, virou rotina recorrer ao STF. "O Supremo tornou-se tribunal de pequenas causas da política", diz Oscar Vilhena, agora não no livro, mas em entrevista. O excesso de atribuições do Supremo resultou num desenho institucional ruim, segundo Vilhena - "e, com desenho institucional ruim, é difícil funcionar bem". Os constituintes de 1987/1988 chegaram a cogitar da criação de um tribunal exclusivamente constitucional, no modelo dos tribunais europeus; a tese não vingou. Na comparação com os justices da Suprema Corte dos Estados Unidos, "os ministros brasileiros jogam futebol de campo, enquanto os americanos jogam futebol de salão". Mas um fator redime e exalta o Supremo, na opinião do diretor da Fundação Getúlio Vargas: "Não é um órgão usurpador".

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