Segue o retrato do STF na visão particular de Roberto Pompeu de Toledo para a revista Veja. Clique para ler as partes anteriores: parte 1, parte 2, parte 3, parte 4, parte 5.
Os gabinetes dos ministros se distribuem pelos andares dos corredores sinuosos do Anexo II. Gabinete a gabinete, o cenário se repete. Uma placa à porta indica o nome do ministro, ao lado de uma porta aberta que conduz a um cubículo. Duas ou três poltronas e um balcão de atendimento compõem o recinto. Dá para ver uma meia dúzia de funcionários, atrás do balcão. É um ambiente de repartição pública. Caso tenha compromisso com o ministro, o visitante será conduzido de volta ao corredor e a uma porta a poucos passos de distância, sem indicação. Chegamos à sala onde o ministro trabalha e recebe, agora um ambiente de executivo classe CEO, ou de escritório de advocacia de primeira linha. Nosso encontro dessa vez é com o ministro Luís Roberto Barroso, e a conversa começa com uma volta a junho de 2013, quando ele ingressou no tribunal. Vencidas a indicação, a sabatina do Senado (aprovado por 59 votos a 6) e a posse, começar por onde?
"Foi um choque", responde Barroso. "Como entrar num trem de alta velocidade sem conhecer seu rumo. Um choque pelo volume de trabalho, pela variedade, pela dinâmica de trabalho. Leva seis meses para engrenar. Gostaria que tivessem feito comigo o que fiz com os que chegaram depois, Edson Fachin e Alexandre de Moraes. Chamei-os para uma conversa."
Ele só começou a trabalhar efetivamente em agosto. O mês de julho, de férias, passou-o, como era seu hábito, em Paris, com a mulher, num apartamento alugado. Em meses anteriores a esse período, escrevia livros e artigos. Dessa vez passou-o estudando direito penal. Precisava preparar-se para enfrentar os processos de autoridades com prerrogativa de foro. De volta ao Brasil, começou a montagem de sua equipe com um concurso entre funcionários efetivos da corte interessados em funções gratificadas. Para os cargos de livre escolha e para os de juízes auxiliares, trouxe ex-alunos.
Quando a ação que chega a seu gabinete é repetitiva, isto é, já ganhou repercussão geral e deve ser decidida de acordo com o precedente, a assessoria cuida dela e ele apenas assina. O assessor também pode se encarregar de redigir um voto, quando a relatoria não é dele. Os seus votos de relator, e alguns outros importantes em que não é relator, ele os redigirá em casa, e à mão - "à mão, como você", diz ao interlocutor, que toma notas. No plenário ele prefere não ler o voto. Usa o dom de falar de improviso com clareza e fluência, sem deixar de a pequenos intervalos pairar os olhos no texto escrito. Na hora de encaminhar o voto para publicação, escolherá o que lhe parecer melhor, o escrito ou a degravação do improviso.
Um ano antes de ser nomeado ministro, Barroso recebeu o diagnóstico de um câncer agressivo no esôfago. O prognóstico era de não mais de um ano de vida. Submeteu-se a químio e radioterapia, mas também recorreu a tratamentos alternativas enquanto lia a montanha de livros judaicos, católicos e espiritualistas, ou de espiritualidade oriental com que foi presentado. Os exames a que se submete periodicamente indicam que houve remissão do câncer, e ele afirma que saiu da provação mais "espiritualizado". Em que consiste essa "espiritualização"?
"Consiste em..." - pausa para refletir, e começa a enumerar: "Aristóteles..."
Aristóteles espiritualista? Não devia ser Platão? Ele insiste: "Aristóteles, a Bíblia Judaica - os judeus não gostam que se fale Antigo Testamento; gosto do Livro dos Provérbios -, os Evangelhos, Buda, Kant (gosto da Metafísica dos Costumes), Hegel... Hegel é um autor complicado, retenho dele que a história caminha no sentido do bem e do processo civilizatório".
O ministro pratica a meditação e participa do Brahma Kumaris, "movimento espiritual dedicado à transformação pessoa e renovação do mundo", segundo descreve seu site na internet. Criado na Índia em 1937, o movimento se espalhou pelo mundo. Barroso integra a comunidade Brahma Kumaris de Oxford, na Inglaterra.
A coluna de Ancelmo Gois no jornal O Globo publicou recentemente foto de dois meninos de 7 anos fantasiados de tiroleses, tirada num Carnaval de Vassouras, no Rio de Janeiro, terra natal de um deles e da família do outro. "Quem são esses miúdos?", perguntava o texto. Eram o vassourense Barroso e o cantor e compositor Cazuza, e a foto havia sido passada ao colunista pelos organizadores do Centro Cultural Cazuza a ser inaugurado na cidade fluminense. "Foi uma grande peça que o Ancelmo me aprontou", diz o ministro. E mostra no celular a mensagem que enviou ao jornalista; dizia que, a partir desse episódio, deixava de ser partidário da liberdade de imprensa. As famílias, dele e de Cazuza, eram amiga, explica, mas ele só conviveu com o compositor na infância. Considera-o um "grande poeta popular".
Ainda antes de ser nomeado ministro, Barroso já se mudara para Brasília. Ficava mais cômodo para quem, como advogado constitucionalista, ia sempre à capital federal. Ele gosta da cidade? "Adoro Brasília." Adora o quê? "O verde, os amplos espaços, a possibilidade de morar em casa. Aqui moro na casa de meus sonhos. E pude instalar na casa a biblioteca dos meus sonhos."
Não é por má intenção que se vai visitar o gabinete do ministro Gilmar Mendes logo em seguida ao de Barroso. Os conviverão na mesma página de revista, mas papel não machuca. O gabinete de Gilmar ficar no 5.º andar do Anexo II, no fim do corredor, e o de Barroso no 4.º andar, também no fim do corredor; estão um em cima do outro. Gilmar Ferreira Mendes é o único dos três ministros nomeados pelo presidente Fernando Henrique Cardoso que permanece no tribunal. Nelson Jobim e Ellen Gracie aposentaram-se. Mendes ostenta uma das mais sólidas formações entre a composição atual. Seus trabalhos sobre o controle de constitucionalidade são um marco. As ações declaratórias de constitucionalidade são "um pouco um invento meu", afirma. Trabalhou na formatação do instituto - o mesmo com que hoje se tenta invalidar a possibilidade de prisão em segunda instância - "a seis mãos", com o jurista Ives Gandra Martins e o então deputado Roberto Campos, em 1999, quando trabalhava na Casa Civil do governo FHC.
Mendes formou-se na Universidade de Brasília e em seguida ingressou no Itamaraty, como oficial de chancelaria. De 1979 a 1982, entre os 23 e os 26 anos de idade, serviu em Bonn, capital da então Alemanha Ocidental. "Aprendi o idioma e estudei lá." Em 1990, doutorou-se na Universidade de Münster com a tese "O controle abstrato de normas perante a Corte Constitucional Alemã e perante o Supremo Tribunal Federal". Em junho de 2002, aos 46 anos, chegou a um STF protagonizado por figuras como o conservador Moreira Alves e seu oposto Sepúlveda Pertence. Como foi o impacto da chegada? "Não houve impacto, porque já aguardava vir para cá", diz. Vinha se destacando, no governo FHC, primeiro como subchefe da Assessoria Jurídica da Casa Civil, depois como chefe da Advocacia-Geral da União. Nesse último posto travou batalhas cruciais para o governo, entre as quais a defesa do racionamento imposto à época da crise enérgica de 2001.
A notoriedade não o teria tentado para uma carreira política? "Houve gestões para uma candidatura a deputado federal pelo Mato Grosso, mas preferi ficar na área jurídica. Cumpri meu destino."
Que destino, o Judiciário? "A área jurídica. A área jurídica ligada à política."
Gilmar Mendes não é de charmes nem brincadeiras, pelo menos com quem conversa pela primeira vez. O controle jurisdicional do poder é tema que o apaixona. "O habeas-corpus é o elemento fundante da ação da Justiça contra o abuso do poder", diz. Muito em função de Rui Barbosa, o habeas-corpus conheceu uma ampliação de seu escopo para além da garantia da liberdade de ir e vir. "Rui Barbosa chegou a ganhar habeas-corpus até para realizar comício", afirma. A referência é a episódio ocorrido na campanha presidencial para suprir o mandato 1919-1923, depois da morte, sem assumir, do presidente eleito Rodrigues Alves. Rui Barbosa lançou-se candidato da oposição contra o candidato oficial, Epitácio Pessoa. Em Salvador, seus partidários foram hostilizados pelo governo e pela polícia local; até incidente com feridos e um morto ocorreu. O habeas-corpus obtido junto ao STF garantiu-lhes, a Rui e aos correligionários, o direito de realizar em segurança atos de campanha. A "doutrina brasileira do habeas-corpus", como a apelidaram, chegou a ser estudada no exterior.
O mandado de segurança, adicionado ao corpo institucional brasileiro pela Constituição de 1934, veio a substituir a concepção alargada do habeas-corpus. Introduzem-se posteriormente as ações diretas, de inconstitucionalidade (por emenda constitucional de 1965), depois as ações declaratórias de constitucionalidade, que permitem reclamações diretas ao Supremo, sem passar por instâncias inferiores. "Em nenhum país se julga tanta ação direta de inconstitucionalidade como no Brasil". Foi a ela que recorreu o MDB no episódio já citado, em que o partido contestava o decreto de censura prévia aos livros e periódicos no governo Médici e que provocou a renúncia do ministro Adaucto Lúcio Cardoso.
Tanto quanto pela competência profissional, Gilmar Mendes destaca-se pela belicosidade. Já entrou em duros choques com os colegas Joaquim Barbosa e Marcos Aurélio, além de Barroso. Na votação que proibiu as doações empresariais às campanhas políticas, em que foi derrotado, deixou ostensivamente o plenário quando ia falar o representante da Ordem dos Advogados do Brasil, autora da ação vitoriosa. O ministro estaria cansado do Supremo?
"Meu filho costumava dizer: 'Pai, quando você vai para o Supremo?'. Depois, começou a perguntar: 'Pai, quanto tempo você vai ficar no Supremo?', e eu respondia: 'Uns doze anos'. Hoje, ele me diz: 'Pai, já passaram os doze anos'."
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