Há exatos 1 mês e 10 dias o Museu Nacional do Rio se desfazia em chamas. Mais de 20 milhões de itens de seu acervo - um dos maiores de História Natural e Antropologia das Américas - seguiu o trágico caminho.
De lá para cá, o que mudou? Teria o brasileiro adquirido em fim amor por seu patrimônio histórico e cultural?
Para marcar esse mais de um mês de inércia, reproduzo texto de José Francisco Botelho, de título O Brasil não é um rebotalho e subtítulo Nossa cultura não pode ser engolida pelas chamas da estupidez, que foi publicado na edição de 12 de setembro de Veja (página 67), há um mês, portanto, e que muito bem retrata nossa situação de penúria cultural.
No primeiro ato da Tragédia de Júlio César, Roma é assolada por um dilúvio de portentos funestos. Batalhões de fantasmas marcham pelas ruas, feras espectrais rugem no Capitólio, meteoros rasgam os céus, ventanias dilaceram-se sobre o Tibre, por todo o lado há lamentos e ranger de dentes. Para Cássio, inimigo fidagal de César, os sinais celestes apontam a iminente aniquilação de Roma. À imagem de Troia e Cartago, a grande urbe do Lácio está fadada a arder. E, para o amargo Cássio, a destruição não se dará numa labareda de glória, mas num fogaréu de ignomínia. "Quem deseja acender um fogo às pressas começa com gravetos, palha frágil", esbraveja o acre orador, em minha própria tradução (publicada neste ano pela Companhia das Letras). "Que montoeira de lixo então é Roma, um bagaço, um refugo, um rebotalho, para servir de abjeto combustível a iluminar um ser tão vil?" Como todos os personagens da tragédia shakespeariana, Cássio sofre de uma incurável cegueira perante as brumas da história - no fim das contas, ele próprio ajudará a incendiar a cidade que deseja salvar. Ainda assim, ouso tomar emprestada sua interpelação retórica. Neste setembro ardente, em que o amor-próprio dos brasileiros parece ter descido ao fundo da fornalha, atrevo-me a indagar: acaso é nossa cultura um bagaço, um refugo, um rebotalho? Que vileza é essa que se desenha à contraluz no incêndio de nosso passado e na sombra de nosso presente? O que as chamas do Museu Nacional horrivelmente iluminam não é uma efígie nem uma sigla, mas as feições de uma doença espiritual - a mazela, o desnorteio e a incúria que nos impedem de conservar um dos patrimônios mais extraordinários do mundo.
Há décadas lavra-se no Brasil uma guerra inominada e ecumênica contra nosso legado artístico e histórico. Quantas igrejas, quantos casarios não foram derrubados em nome de um progresso retrógrado? Quantos monumentos não foram depredados em nome de causas confusas? Quantos tesouros não foram negligenciados em nome de modismos obtusos e custosos? O fogo do Museu Nacional não se acendeu por faíscas casuais. Suas chamas também projetam, em horrível claro-escuro, a silhueta de uma refrega ideológica que adoece o país, sobrepondo conclusões prévias à nítida consideração dos fatos e impedindo que identifiquemos - e sanemos - as raízes reais de nossas desgraças. Enquanto o patrimônio brasileiro servir de combustível descartável a jogos de poder e duelos de narrativas, continuaremos a arder.
Não pretendo, contudo, ser cego e amargo como Cássio. A imagem de Dom Pedro II recortado nas labaredas, como que descendo aos infernos, é um convite quase irresistível ao desespero - mas desesperar-se, numa hira dessas, é recusar a boa luta. O Brasil está em chamas, o Brasil está em cinzas, mas o Brasil não é um rebotalho. Nossa cultura vale mais que o pandemônio e o palanque. Para apagar o incêndio de nossa cultura, é preciso encará-la como um fim em si mesma e lhe conferir uma defesa à altura do que realmente é: um patrimônio inestimável de toda a humanidade.
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