Depois das redes sociais, tudo, absolutamente tudo neste país tem potencial para causar enorme controvérsia. Nos últimos dias, tenho acompanhado um movimento a respeito de uma tal edição do programa Encontro, apresentado por Fátima Bernardes na Globo. Segundo exaltados proprietários de contas no Twitter, no Facebook e no WhatsApp, o programa teria ultrajado a população brasileira ao fazer com que algumas pessoas escolhessem entre salvar um policial ou um traficante e este último tenha sido o eleito.
Não gosto de meias verdades. Achei esquisitíssimo que a escolha estivesse resumida a um policial e um traficante. Achei ainda mais esquisito que a maioria dos eleitores tenha ficado com o traficante, E também não entendia o que danado Fátima Bernardes ou a Globo teriam com a escolha do povo.
Pois bem. Hoje choveram reportagens a respeito do assunto. Segundo elas (reafirmo que não vi o programa), o programa resolveu colocar alguns espectadores na mesma situação de um médico num filme a ser lançado (Na Pressão). No filme, o médico teria que escolher, diante das condições do hospital, entre atender a um policial levemente ferido ou atender a um traficante gravemente ferido.
Na minha ignorância sobre o programa, vejo que o povo escolhe o que deseja extrair das situações. Para que falar na condição física do policial e do traficante? Fiquemos com o resumo de que se tratava de um policial e de um traficante. O detalhe de que um estava levemente ferido, o que pressupõe que não corria risco de morte, e o outro estava gravemente ferido, o que leva a crer que poderia morrer sem atendimento e até que tal condição poderia se verificar mesmo se atendido, poderia sem desprezado.
A canalhice está justamente nessa abstração. Ora, o médico faz um juramento de salvar a vida de quem quer que seja. Não lhe cabe nem mesmo saber se o paciente que lhe é encaminhado é policial ou traficante. O desprezo a um paciente crítico em detrimento de outro com ferimentos leves pode, inclusive, levar o médico à condição de autor de homicídio, ou pelo menos ensejar pesada indenização por danos morais. Mas isso é um detalhe neste louco mundo em que todos estão prontos a execrar qualquer um em praça pública, especialmente em nome de certos valores morais.
Estivessem policial e traficante na mesma condição, não restaria dúvida de quem deveria ser atendido. Na escassez de recursos, busquemos a salvação daquele que deve servir e proteger os cidadãos. Mas não era essa a condição. E aí caberia ao médico avaliar apenas a urgência das questões que lhe são apresentadas.
Criticamos tanto a falta de ética da população brasileira e quando temos um exemplo de que ainda há esperança para a nossa nação, já que os eleitores do programa passaram por cima da ideia de que bandido bom é bandido morto e resolveram se ater apenas a quem de fato necessitava criticamente de cuidados médicos, paladinos da moral decidem cair de pau em quem preferiu a ética.
Esse pessoal nem percebe que acha certa a política do "você sabe com quem está falando?". Afinal, todos defendem que seja exatamente esta a postura dos médicos daqui para a frente: que desejem saber a identidade social de quem será atendido. Entre um político e um gari, qual deveria ser a escolha? Entre uma celebridade e um anônimo?
Eu fico com os médicos que olham para o prontuário de pacientes e para sua necessidade de atendimento urgente, e não para sua condição social ou profissão. É este o país em que quero viver. E é por isso que detesto as meias verdades e seus defensores.
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