sábado, 27 de abril de 2019

Ideologia e valores

Ainda no Direito, Tércio Sampaio Ferraz Júnior, em sua Introdução ao estudo do direito (2. ed., São Paulo: Atlas, 1995), discorre sobre ideologia e valores numa passagem (páginas 344-345) que  se constitui em importante ensinamento para os dias atuais. O trecho segue abaixo exatamente como escrito à época.

"Na decisão, pode-se dizer, a verdade factual está sempre submetida a valoração. Valores são símbolos integradores e sintéticos de preferências sociais permanentes. Ninguém é contra a justiça, a utilidade, a bondade. Mas, na argumentação, os valores às vezes são usados como prisma, critério posto como invariante e que permite demarcar e selecionar o objeto: o álcool é perigoso para a saúde. Saúde está posta como critério valorativo (valor saudável) que demarca (avalia) o objeto álcool como perigoso. Às vezes, porém, o valor é usado como justificação para uma situação de fato, isto é, ele é posto como uma variável que se determina por sua relação com o fato: da propriedade privada se diz, por exemplo, que é fundamento da justa liberdade.

O uso dos valores admite as duas funções. Podemos, a saber, encarar a igualdade como valor-prisma, que provoque avaliações demarcadoras do sentido da distribuição de renda, do acesso eqüitativo à educação, mas podemos usá-la como valor - justificador -, que confirme as desigualdades sociais (igualdade é tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais). Para controlar este duplo uso é que entra a ideologia, como uma avaliação dos próprios valores. A ideologia torna rígida a valoração. Assim, igualdade pode ser um critério de justiça, a justiça pode ter um sentido liberal, comunista, fascista etc. A ideologia, assim, organiza os valores, hierarquizando-os, constituindo uma pauta de segundo grau que lhes confere um uso estabilizado. A ideologia é, então, uma espécie de valoração última e total, que sistematiza os valores. Sendo última e total, uma ideologia é sempre impermeável a outra ideologia. Ideologias não dialogam, mas polemizam. A possibilidade de um diálogo entre ideologias pressupõe, portanto, a aceitação de uma superideologia, dentro da qual as ideologias se tornam valores. Por exemplo, a convivência de comunistas e capitalistas num organismo como a ONU pressupõe a superideologia da universalidade dos direitos fundamentais, dentro da qual as valorações ideológicas sobre a justiça, a ordem, a saúde se tornam possíveis."


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