terça-feira, 30 de abril de 2019

Legitimidade como crença

Certa vez, chegou até mim uma dúvida de alunos de Direito a respeito de quanto tempo duraria o contrato social de Rousseau. Os alunos achavam que ele só duraria enquanto houvesse selvageria na sociedade e que era mesmo um contrato firmado. Não conseguiam compreender que o filósofo suíço tão-somente apontava uma justificativa para a existência do Estado em detrimento de uma realidade de todos contra todos.

Achei certa graça da dúvida porque ela gerou grande discussão num grupo de WhatsApp, mas seria bem melhor tratada numa sala de aula, diante do(a) professor(a) da turma.

Tércio Sampaio Ferraz Júnior em seu livro Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação (2.ed. São Paulo: Atlas, 1995) traz o tema de outra forma, mas talvez com a melhor definição de que nem tudo é tão preto no branco assim quando tratamos de conhecimento; também lidamos com um pouco de crença. 

A passagem que bem exemplifica isso está na página 350:

"Como se trata de jogo sem fim, isto é aviamento impossível de um ângulo interno. Em consequência, podemos sempre dizer se os comportamentos jurídicos são lícitos ou ilícitos, conforme um princípio interno de legalidade, mas não podemos estimar a própria legalidade. Salvo, é claro, se admitirmos um padrão externo. Analogamente ao que se disse sobre o jogo sem fim, pode-se imaginar, primeiro, a hipótese de uma meta-língua, um pacto inicial que determina aquelas normas que definiram a legitimidade do jogo: a constituição como norma das normas e princípio da legalidade. Segundo, podemos conceptualizar o tempo, isto é, conceber a História como um processo dentro do qual os sistemas jurídicos aparecem, superam-se, desaparecem: um direito superado historicamente não tem mais razão de ser e se torna ilegítimo. Terceiro, admite-se um super-direito, que julga os sistemas jurídicos: é a hipótese de um direito universal, exterior e superior aos direitos positivos, e que lhes confere o caráter legítimo.

Nas três hipóteses reconhecemos possibilidades de fundamentar o direito e de decidir sobre a sua legitimidade. Sucede, porém, que, no caso dos sistemas jurídicos, nenhuma delas é viável, posto que apenas aparentemente são padrões externos. Uma constituição não está fora do sistema, mas é a primeira norma do sistema. Por isso se sistematiza, se interpreta e se aplica conforme as regras do próprio sistema. A segunda hipótese supõe algo de fato impossível: alguém que, vivendo temporalmente dentro do sistema e de sua contingência fática, se coloque de fora, como um observador neutro, capaz de uma visão histórica universal. A terceira saída também não é viável, pois um super-direito é também um direito e acaba por submeter-se às regras de conhecimento e interpretação do próprio direito. Em suma, se o direito é um jogo sem fim (e sem começo) não há como fundá-lo: sua legitimidade é uma questão de crença. Resta saber se esta é a última palavra que cabe sobre o assunto."

Talvez também o problema esteja na aversão que alguns novos professores de Direito têm a autores tidos como antigos. Tudo agora é esquematizado, moderno. Aprofundado, nem sempre.

Enfim, só a Filosofia de verdade nos salva.

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