Sou da época da Turma do Balão Mágico, programa infantil matinal da Globo que lançou Simony, Jairzinho, Mike, Toby e Fofão ao sucesso. Dancei com suas músicas e sabia as letras de cor e salteado. Uma, na minha inocência da primeira infância, eu achava que tinha sido escrita especialmente para o meu avô:
O meu avô é doce como caramelo
O meu avô é fofo como o algodão
O meu avô tem muitas coisas e um castelo
De mentirinha, mas é um bruta castelão
O meu avô conta piadas engraçadas
O meu avô tem figurinhas de montão
Muita graça, muito riso
Meu avô sabe brincar
É tão lindo seu sorriso
É meu aaaaa...
Avozinho, avozinho, avozinho dá um beijo
Dá um beijo, avozinho, um beijinho, meu amor
Avozinho, avozinho, avozinho, dá um beijo
Dá um beijo, avozinho, um beijinho, por favor
O meu avô tem uma estátua voadora
O meu avô tem um isqueiro de vulcão
O meu avô corta fumaça com tesoura
De mentirinha meu avô é campeão
O meu avô tem dois anéis lá de Saturno
O meu avô tem plantação de macarrão
O cabra era arretado! Deixou uma família de posses no interior de Sergipe porque queria ganhar o mundo e fazer sua própria história. Era impossível não rolar uma lágrima quando ele enchia os olhos d'água para falar da saudade da mãe que o tinha como filho favorito.
Saiu pelo mundo sem eira nem beira, porém cheio de vontade de viver. Não levou um centavo consigo e não recusou qualquer trabalho. Conquistou o coração de muitos que lhe cruzaram o caminho e se punham a ajudá-lo a avançar mais casas na sua batalha de fazer a vida.
Rodou por profissões e cidades deste Brasilzão. Foi para o sudeste. Virou enfermeiro só de olhar. Antes já negociara açúcar que carregava nas mulinhas da família até o litoral sergipano para ter o próprio dinheiro. Não recusou serviço. Arrebatou corações femininos.
Entrou para o exército e aí foi que rodou o Brasil. Contava com gosto como fez um teste para mecânico do exército quando já estava lá dentro. A preparação incluíra a loucura de desmontar e montar de volta o motor de um GMC do exército com mais três amigos num fim de semana. Sabia de cor as questões que caíram na prova.
Inquieto, não sossegava o facho. Ainda no exército, terminou chegando a Natal em 10 de agosto de 1941, data relembrada com entusiasmo a cada encontro com qualquer interlocutor. Abriu uma mercearia. Conquistou muitos clientes num ramo já dominado por gente antiga.
Tava de bom tamanho? Que nada! Um dia cismou de que queria fazer parte da Rede Ferroviária Federal. Se ofereceu ao chefe local até como mão de obra para arrancar capim com as mãos. O cara ficou tão encantado com sua força de vontade que o nomeou como seu motorista particular. Aí deixou o exército.
No novo órgão, galgou posições e virou fiscal de trem. Começou a sentir que era hora de aquietar o facho. E passou a ouvir de muitos companheiros que o homem que se casasse com Juracy, secretária do chefão de lá, tirava a sorte grande.
Num belo dia, empurrou a porta de vaivém da sala de Juracy e perguntou se o chefe dela estava lá, ao que ela respondeu que não. Atrevido, ele disse: "Eu sei. É com você que vim falar. Olhe, faz três meses que lhe namoro pelas costas e você não sabe. Eu quero casar com você. Se você disser que sim, eu caso com você se seu pai aceitar e se ele não aceitar."
Juracy, impressionada com tanta ousadia, respondeu como moça recatada da época: "Passe mais tarde lá em casa para falar com meu pai." Pronto, não resistira aos encantos daquele sergipano cheio de entusiasmo.
Pensam que ele contou a verdade sobre as posses de sua família? Disse que seus irmãos não pediam esmola porque não tinham um saco. Casaram-se e ele manteve a conversa fiada até levá-la para conhecer sua enorme família. Ainda teve a audácia de adverti-la de que estavam dormindo naquela noite anterior à viagem numa cama, mas que podiam dormir na noite seguinte numa esteira no chão.
No dia seguinte, praticamente uma romaria os recepcionou em Simão Dias. Juracy, que nunca ligou para posses, ficou extremamente chateada com a mentira que João Francisco vinha lhe contando desde o "namoro pelas costas". Foi preciso uma irmã intervir: "Juracy, não foi melhor assim? Já pensou se ele dissesse que era rico só para você casar com ele?" Sábia que só ela, vovó desfez a mágoa.
Esse era o espírito de vovô. Brincalhão, falava alto, adorava contar um piada, não tinha pena de pregar peças em ninguém. Eu fui sua vítima número um quando pequenininha. Certo dia, sabendo que eu era fã dos filmes de Lassie na Sessão da Tarde, disse que ia me dar aquela cachorra dos filmes. Iludida, contei a todo mundo. Aí meu irmão cortou minhas asas dizendo que aquela cachorra havia morrido muitos anos antes de eu nascer.
Adorava jogar conversa fora no antigo Café São Luiz na Rua Princesa Isabel no centro da cidade. Sempre trazia um milho ou um pacotinho de castanha para as netas na volta para casa quando eu estava por lá. Também gostava de nos dar um dinheirinho quando pedíamos. Certa vez, pedi dinheiro para tomar sorvete. Sem pena, vovô me deu 1.500 cruzeiros. Ao mostrar a mamãe a "ruma" de dinheiro recebida (uma nota de 1.000 e uma de 500), minha mãe disse: "minha filha, esse dinheiro que papai lhe deu não compra nem um pirulito." O problema era que a nota de 500, que não valia mesmo nada, era muito parecida com a de 5.000, essa sim capaz de comprar o sorvete. Ela me ensinou a contar os zeros para não cair na lábia de vovô. No nosso encontro seguinte, ele estourou numa gargalhada quando eu lhe disse, do alto da minha sabedoria de 4-5 anos de idade, que ele não me enganaria mais com a nota de 500.
Nunca recusou trabalho. Acho que aprendi com ele essa história de não me contentar com um só ofício. Foi meu grande incentivador quando decidi que o valor que um sebo queria me pagar por minhas revistinhas quase novas era uma afronta e resolvi montar uma banca na porta de casa para vendê-las ao dobro do preço. Vendi todas.
Pegava todo mundo com duas histórias que contava bem sério. Numa, ele dizia que tinha amanhecido com um problema. Fazia uma pausa e dizia que tinha amanhecido com os calcanhares para trás. Noutra, quando uma pessoa entrava pela primeira vez em seu carro (demorava, mas só comprava zero km e à vista), falava sério que o veículo tinha vindo com um defeito: quando ele pisava no freio, o carro parava; quando acelerava, ele andava. Tinha pena das inúmeras vítimas, sendo eu sempre a primeira.
Driblou a morte várias vezes: levou uma facada direcionada a outra pessoa; não levou um só tiro que dois ladrões de carro dispararam contra ele e, sem estar armado, desarmou os meliantes e os botou para correr; desistiu de um voo que fez pouso forçado depois; sofreu parada cardiorrespiratória por erro médico numa cirurgia e foi ressuscitado sem sequelas permanentes; venceu um câncer.
Aos 97 anos, já tinha alguns momentos de falha na memória. Quando perguntado sobre algo que não lembrava, respondia "eu sei, mas é que agora ando tão esquecido com essa minha doença...".
Aos 97 anos, driblou mais uma vez a morte ao escapar de um tubo respiratório, algo considerado um milagre pela equipe médica. Foi aí que nos pregou a última peça: nos fez acreditar que não nos deixaria tão cedo. Dessa vez não teve graça. O sergipano arretado nos deixou em plena tarde do domingo de páscoa.
Perdi meu maior conselheiro e exemplo de vida. É por ele que carrego com tanto orgulho o Silva do meu sobrenome tão brasileiro.
Descanse em paz, vô.
Meus sinceros pesames...Raíssa
ResponderExcluirCláudio Formiga.
Muito obrigada, Cláudio.
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