O Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, constitucionalista reconhecido no mundo jurídico, esteve em Natal participando do tradicional evento Quinta Jurídica, realizado mensalmente pela Justiça Federal do Rio Grande do Norte. Entrevistado coletivamente, o Ministro, apelidado pelas más línguas de "comentarista", não se furtou a falar sobre assuntos espinhosos que andam rondando o Brasil juridicamente falando. Parte dessa entrevista foi publicada pela Tribuna do Norte de ontem (página 3) e obviamente eu não me furtaria de trazer as principais opiniões dele para debate aqui no Só Futebol? Não!.
Abuso de autoridade
[Impor limites ao abuso de autoridade] faz parte do Estado de Direito, que, por definição é aquele no qual não há soberanos. Se alguém assumir um papel de soberania, fica acima de todos os limites. Veja que hoje nem as monarquias constitucionais têm soberanos neste sentido. Então, uma lei sobre abuso de autoridades é comum a vários países democráticos. Trata-se de uma lei que estabelece limites para juízes, promotores, delegados e deputados. Toda hora nós temos incidentes nas CPIs (Comissões Parlamentares de Inquéritos). Quem acompanha a convocação de pessoas na condição de testemunha, percebe que elas são levadas como investigadas. E vem a discussão sobre a "presunção de inocência", sobre conduções coercitivas e tudo mais. Então, vale para todos. Nesse sentido, é um passo interessante. Agora, não vou entrar em detalhes, até porque esse texto foi muito alterado no Congresso Nacional e certamente haverá pontos que podem ser controvertidos. Agora, a gente está esquecendo um ponto importante nessa controvérsia. Quando juízes revelam, sobretudo, o medo da aplicação da lei, estão revelando medo da aplicação por quem? São os juízes que vão aplicar a lei. (...) Se entrarem no Google, vão lembrar que essa proposta vem de 2009, quando assinamos o Pacto Republicano e colocamos a necessidade de uma lei sobre abuso de autoridade. O primeiro projeto foi escrito por gente como Teori Zavascki, Everardo Maciel, Vladimir Passos de Freitas, que foi juiz federal e presidente do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região e hoje é assessor especial do ministro Sérgio Moro, gente da maior envergadura que cuidou desse projeto. Depois, esse projeto foi muito discutido no Congresso Nacional.
Prisão de Lula
Eu tenho a impressão de que é necessário discutir essa temática e tem vários aspectos que precisam ser debatidos. Um deles, e não sei quando será, é o que diz respeito à definição sobre a prisão em segunda instância. (...) [O presidente do STF] vem aventando a possibilidade de colocar [em pauta] ainda neste semestre. Tem comigo a questão do pedido de vistas no caso da suspeição do então juiz Sérgio Moro, com pedido de anulação, portanto da condenação de Lula. Não temos ainda data para essa definição. Temos outros pedidos que estão também na pauta da relatoria do Ministro Edson Fachin. Vamos ter que examinar e dar um julgamento justo ao ex-presidente da República. É fundamental que isso ocorra. Não é possível que nós o condenemos previamente ou o absolvamos previamente.
Respeito à Constituição
Tenho a impressão de que nós temos que trabalhar também aquilo que alguns autores chamam de uma pedagogia dos direitos fundamentais. Vamos assumir a seriedade diante do combate à criminalidade. Temos que combater a criminalidade e a corrupção de forma efetiva. Mas vêm as notícias sobre corrupção e aí as pessoas dizem que temos de ter um tipo de punição geral. E o que acontece? Após o Intercept, a gente descobre que essas pessoas são de carne e osso ou que heróis têm pés de barro. Tenho dito sempre que não se combate crime cometendo crime. Então, é fundamental que a gente tenha essa visão. Agora, é compreensível a reação das pessoas porque muitos se cansam da insegurança pública, claro, e da violência. As pessoas pagam impostos altos, têm uma vida atribulada e sem retorno. E percebem a questão da corrupção. Quando aparece alguém que é combatente da corrupção ou que perfilha como tal, essas pessoas viram heróis. Essas medidas são todas importantes. É preciso que a gente organize o Estado para combater a insegurança, a violência, a corrupção, mas dentro dos moldes legais. O que acontece hoje quando se concede um habeas corpus é que a própria mídia veicula como se isto [fosse] proteção de bandido, sem saber o que ele fez, o que é que está nos autos, o que de fato ocorreu. Muitas vezes há prisões em massa e, quando se descobre, há casos de homônimo. Quando se instaura esse estado de coisas, as pessoas só começam a entender quando de alguma forma são atingidas. E quando se instaura esse estado de generalização de insegurança e de empoderamento de certos setores, a gente bate palma porque é o vizinho que está sendo atingido. Mas, cedo ou tarde, vamos ser atingidos. Então, no fundo, a gente tem que trabalhar continuamente para a melhoria do sistema como um todo, com segurança jurídica, reparos devidos e com certa paciência. Se nós formos olhar, a nossa ordem constitucional tem 30 anos. Então, a gente precisa ter essa paciência e inclusive perdoar os excessos que alguns cometem nas críticas, naquela linha do Evangelho: "Pai, eles não sabem o que fazem."
Lava Jato
Tenho brincado nas sessões do Supremo Tribunal Federal dizendo que sou mau profeta porque acabo falando coisas que depois acontecem. Alguns até me atribuem: "Você tem conexão com o diabo." Daqui a pouco, vão dizer: "Você tinha conexão com o Intercept." E coisas do tipo. Mas não. (...) Tenho 63 anos e uma vida pública de 30 anos ou mais. Eu vivi isso intensamente, trabalhando com gente sofisticada intelectualmente. Fui assessor jurídico de FHC, portanto, certamente o mais destacado dos presidentes que nós tivemos em termos, inclusive, de elaboração intelectual. Então, a gente aprende a fazer conexões e o que é que se via nesses casos todos? Toda vez que havia uma decisão do STF ou do STJ, os procuradores faziam campanhas públicas contra a decisão. Eu me referi, no plenário do Supremo, a um ataque que os procuradores tinham feito ao Ministro João Noronha, porque ele, no plantão, tinha concedido um habeas corpus, e o desqualificavam. De onde essa gente tirou essa autoridade? Voltando à minha fala inicial, eles se imaginaram soberanos, acima de tudo, porque a mídia os embalou. Eles ficaram animados com tudo isso, receberam aplausos e, talvez, parte dos aplausos fossem, de fato, devidos. Mas ninguém imaginava, por exemplo, que Dallagnol estava enriquecendo com palestras, monetizando a Lava Jato. Ninguém imaginava. Isto é vender cargo público. Uma forma é vender um ato, outra é vender também a função, monetizando de alguma maneira. Isso estava ocorrendo, foi revelado.
Mensagens entre Moro e Dallagnol
Não são naturais. Estamos na Justiça Federal. Podem perguntar aos juízes. Isso não é natural. Agora, o que aconteceu nesses anos todos? Tivemos várias dessas operações, nas quais muito provavelmente tenha havido essa confusão. Juiz chefe de força-tarefa? Isso é ilegal, inconstitucional. Então, isso precisa ser de fato reverificado e esse é um aprendizado para todos. (...) Acho positivo que isso venha à tona, a despeito de lamentar, deplorar o que venha desta maneira. Acho que o hackeamento tem que ser punido, mas é importante que a imprensa divulgue esses fatos e que nós conheçamos essas revelações. Se olharem as conversas que até agora foram reveladas, tínhamos um modelo no qual juiz, promotor... Só os advogados não estavam juntos. Receita Federal e Polícia Federal atuavam em conjunto. Isso é uma jabuticaba. Isso é só no Brasil. Tem alguma coisa de muito singular. Quando tem aquela conversa em que Dallagnol fala para um chefe de gabinete da Procuradoria Geral da República: "Dê o endereço do Ministro Toffoli, que eu tenho um contato na Receita." Sabe o que isso representa? Isso é coisa do baixo mundo. É disso que estamos falando, as pessoas não entenderam ainda.
Opinião pública
As pessoas mudam de posição. Eu continuo na mesma posição. Quando fiz muitas críticas aos atos do PT, me aplaudiam durante o Mensalão. Quando a gente censurava o PT, aplaudiam. Depois passaram a criticar. Eu não mudei de posição. O Mensalão é um caso exemplar. Nós condenamos a as pessoas e só depois do trânsito em julgado é que houve a execução da pena. Fala-se muito do Ministro Joaquim Barbosa, mas ele cumpriu o catecismo, a cartilha. Aplicou claramente aquilo que determinava a Constituição, com um julgamento no qual houve embargos de declaração, embargos infringentes, que foram admitidos nos casos cabíveis. Então, isso é um vicissitude que a gente tem que enfrentar. Agora, acho engraçado que, se olharem agora, vão achar no Twitter uma hashtag "Gilmar estava certo". Eu fico feliz, mas já poderiam ter dito isso antes.
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