Amanhã, 1.º de dezembro, é o Dia Mundial de Luta contra a Aids, e a newsletter Tudo a Ler, da Folha de S.Paulo, trouxe nesta semana um trecho do ensaio Aids e suas Metáforas, de Susan Sontag, traduzido por Paulo Henriques Britto e Rubens Figueiredo, publicado pela Companhia das Letras.
Publicado originalmente em 1989, o texto é extremamente atual, talvez por termos sido sugados por uma quase máquina do tempo de 2018 para cá que nos jogou de volta à realidade dos anos 80, ainda mais nestes tempos de pandemia. Vale a leitura e por isso compartilho a seguir.
Boa parte do bem-intencionado discurso público de nosso tempo expressa o desejo de ser franco a respeito de um ou outro dos diversos perigos que talvez nos levem a uma catástrofe absoluta. E agora há mais um. Além da destruição dos oceanos, lagos e florestas; do crescimento demográfico incontrolável nos países mais pobres do mundo; de acidentes nucleares como o de Chernobyl; dos danos sofridos pela ozonosfera; da ameaça constante de conflito nuclear entre as superpotências; ou de um ataque nuclear perpetrado por algum país não controlado por nenhuma superpotência -, além de todos esses perigos, agora temos a aids. Ao nos aproximarmos do fim do milênio, talvez seja inevitável o crescimento de especulações apocalípticas. Ainda assim, não parece possível explicar as proporções a que chegaram as fantasias catastróficas em torno da aids apenas pela proximidade do ano 2000, ou pelo perigo concreto representado pela doença. Há também a necessidade de uma previsão apocalíptica específica para a sociedade "ocidental", e talvez mais ainda para os Estados Unidos. (Alguém observou que os Estados Unidos são um país com alma de igreja - uma igreja evangélica, dada a anunciar fins catastróficos e começos radicalmente novos.) A vontade de fazer previsões pessimistas reflete a necessidade de dominar o medo do que é considerado incontrolável. Exprime também uma cumplicidade imaginativa com o desastre. A sensação de mal-estar ou fracasso cultural dá origem à vontade de começar do zero, de fazer tábula rasa. Ninguém quer uma peste, é claro. Mas é bem verdade que seria uma oportunidade de começar de novo. E começar de novo é algo bem moderno, e bem americano, também.
É possível que a aids esteja tendo o efeito de nos acostumar ainda mais à ideia da destruição global, uma perspectiva à qual fomos habituados pelos armamentos nucleares. Quanto maior a inflação da retórica apocalíptica, mais irreal se torna a perspectiva do apocalipse. Eis uma situação que se repete constantemente no mundo moderno: o apocalipse aproxima-se... e não chega a acontecer. E continua a aproximar-se. Pelo visto, estamos sofrendo de um dos tipos de apocalipse moderno. Temos um que não está acontecendo, cujo resultado permanece suspenso: os mísseis que descrevem órbitas em torno da Terra, com uma carga nuclear capaz de destruir todas as formas de vida sobre a Terra várias vezes sucessivamente, e que (até agora) não dispararam. E temos ainda aqueles que estão acontecendo, e no entanto não tiveram (até agora) as consequências mais temíveis - como a dívida astronômica do Terceiro Mundo, a superpopulação, os desastres ecológicos e também os que acontecem e depois (segundo nos dizem) não aconteceram - como o colapso da bolsa de valores de outubro de 1987, que foi um crack, como o de outubro de 1929, e não foi. O apocalipse agora virou uma novela: não "Apocalipse agora", mas "Apocalipse de agora em diante". O apocalipse passou a ser um evento que está e não está acontecendo. Talvez alguns dos eventos mais temidos, como os danos irreversíveis ao meio ambiente, já tenham acontecido. Mas ainda não sabemos, porque os padrões mudaram. Ou porque ainda não conhecemos os índices apropriados para medir a extensão da catástrofe. Ou simplesmente por se tratar de uma catástrofe em câmara lenta. (Ou que dá a impressão de ser em câmara lenta, porque sabemos que está acontecendo, podemos prevê-la; e agora temos de esperar que ela aconteça, para que venha a se concretizar aquilo que julgamos saber.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário