Para quem estuda História a fundo, a percepção de que esta é fundamentalmente cíclica salta aos olhos. Tudo evolui, evolui, evolui para enfim voltar ao que era no começo, embora não 100% igual.
O Direito, dentre outros, também é assim. Lembro que quando comecei a estudar Direito Penal nos 90 com os professores Paulo Roberto Leão e Ricardo Wagner, a disciplina evoluíra no conceito de crime como um ato antijuridico, típico e culpável para deixá-lo restrito a um ato antijurídico e típico, ficando a culpabilidade como pressuposto da (aplicação da) pena.
Já nos anos 2000, quando voltara à UFRN para me tornar Especialista em Direito Constitucional, tomei um susto (é que não atuo na área criminal, o que termina me distanciando um tanto quanto dos estudos a respeito). O conceito de crime evoluíra novamente para... voltar ao que era antes: um ato antijurídico, típico e culpável. Achei até engraçado quando uma colega bem mais jovem naquela turma comentou sobre o meu conhecimento: "Ah, você é das que acham que crime é antijurídico e típico...". A leve pontada de desprezo não intencional me tocou. Eu pensava a mesmíssima coisa em relação ao conhecimento por ela defendido, de muitas décadas atrás, do clássico Nelson Hungria.
Li e leio novos autores, mas não consigo arrancar da cabeça a lição de Damásio de Jesus sobre crime. Parece-me a mais lógica. Talvez volte à baila com outro autor mais jovem que então revolucionará o Direito Penal rumo ao passado. Afinal, a evolução é cíclica.
Digo isto porque passando os olhos por Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão e dominação, então na 2.ª edição (1995), de Tercio Sampaio Ferraz Júnior, nas páginas 74-76, encontro uma pérola de lição a respeito do que ocorreu lá nos séculos XVIII e XIX e que vem sendo defendido como uma espécie de novo rumo a ter que ser seguido pelo Direito agora no século XXI, embora haja uma redução do verdadeiro sentido dessa volta. Segue para reflexão até dos que não conhecem o Direito a fundo.
(...) Ora, a substituição do rei pela nação, conceito mais abstrato e, portanto, mais maleável, permitiria a manutenção do caráter uno, indivisível, inalienável e imprescritível da soberania (Constituição francesa de 1791) em perfeito acordo com o princípio da divisão dos poderes que, por sua vez, daria origem a uma concepção do poder judiciário com caracteres próprios e autônomos ("O poder judiciário não pode em nenhum caso ser exercido pelo corpo legislativo, nem pelo rei" - art. 1, cap. V) e com possibilidade de atuação limitada ("Os tribunais não podem se imiscuir no exercício do poder legislativo, nem suspender a execução das leis" - art. 3, cap. V).
A teoria clássica da divisão dos poderes, construída com um claro acento anti-hierarquizante face à concepção personalista anterior, iria garantir de certa forma uma progressiva separação entre política e direito, regulando a legitimidade da influência da política no Legislativo, parcialmente no Executivo e fortemente neutralizada no Judiciário, dentro dos quadros ideológicos do Estado de Direito (cf. Friedrich, 1953; 208;Locke, 1952:58; Montesquieu, sd.). Ora, essa neutralização política do Judiciário (Luhmann, 1972) é uma das peças importantes para o aparecimento de uma nova forma de saber jurídico: a ciência do direito do século XIX.
De fato, a neutralização política do Judiciário significará a canalização da produção do direito para o endereço legislativo, donde o lugar privilegiado ocupado pela lei como fonte do direito. A concepção da lei como principal fonte do direito chamará a atenção para a possibilidade de o direito mudar toda vez que mude a legislação. Destarte, em comparação com o passado, o direito deixa de ser um ponto de vista em nome do qual mudanças e transformações são rechaçadas. Em todos os tempos, o direito sempre fora percebido como algo estável face às mudanças do mundo, fosse o fundamento desta estabilidade a tradição, como para os romanos, a revelação divina, na Idade Média, ou a razão na Era Moderna. Para a consciência social do século XIX, a mutabilidade do direito passa a ser o usual: a idéia de que, em princípio, todo direito mude torna-se a regra, e que algum direito não mude, a exceção. Esta verdadeira institucionalização da mutabilidade do direito na cultura de então corresponderá ao chamado fenômeno da positivação do direito (Luhmann, 1972).
Há um sentido filosófico e um sentido sociológico de positivação. No primeiro, positivação designa o ato de positivar, isto é, de estabelecer um direito por força de um ato de vontade. Segue daí a tese segundo a qual todo e qualquer direito é fruto de atos desta natureza, ou seja, o direito é um conjunto de normas que valem por força de serem postas pela autoridade constituída e só por força de outra posição podem ser revogadas. Ora, à medida que tais atos de vontade são atos decisórios, positivação passa a ser termo correlato de decisão. Em conseqüência, implicando toda decisão a existência de motivos decisórios, positivação passa a ser um fenômeno em que todas as valorações, regras e expectativas de comportamento na sociedade têm de ser filtradas através de processos decisórios antes de adquirir validade jurídica (cf. Luhmann, 1972:141). Em outras palavras, direito positivo é não só aquele que é posto por decisão, mas, além disso, aquele cujas premissas da decisão que o põem também são postas por decisão. A tese de que só existe um direito, o positivo nos termos expostos, é o fundamento do chamado positivismo jurídico, corrente dominante, em vários matizes, no século XIX.
No sentido sociológico, positivação é um fenômeno que naquele século será representado pela crescente importância da lei votada pelos parlamentos como fonte do direito. O Antigo Regime caracterizava-se pelo enfraquecimento da Justiça, cuja dependência política se projetava no arbítrio das decisões. A crítica dos pensadores iluministas e a necessidade de segurança da sociedade burguesa passou, então, a exigir a valorização dos preceitos legais no julgamento dos fatos. Daí se originou um respeito quase mítico pela lei, base, então, para o desenvolvimento da poderosa Escola da Exegese, de grande influência nos países em que dominou o espírito napoleônico. A redução do jurídico ao legal foi crescendo durante o século XIX, até culminar no chamado legalismo. Não foi apenas uma exigência política, mas também econômica. Afinal, com a Revolução Industrial, a velocidade das transformações tecnológicas aumenta, reclamando respostas mais prontas do direito, que o direito costumeiro não podia fornecer. Ao contrário, o direito reduzido ao legal fazia crescer a disponibilidade temporal sobre o direito, cuja validade foi sendo percebida como algo maleável e, ao fim, manipulável, podendo ser tecnicamente limitada e controlada no tempo, adaptada a prováveis necessidades futuras de revisão, possibilitando, assim, em alto grau, um detalhamento dos comportamentos juridicizáveis, não dependendo mais o caráter jurídico das condutas de algo que tivesse sempre sido direito (como acontecia com a predominância do direito consuetudinário).
(...)
A percepção da mutabilidade teve conseqüências importantes para o saber jurídico. No início do século XIX, esta percepção provocou, a princípio, uma perplexidade. Afinal, dirá alguém referindo-se à ciência do direito, que ciência é esta se basta uma penada do legislador para que bibliotecas inteiras se tornem maculatura? (Kirschmann, 1966:26). A primeira resposta veio, na Alemanha, pela chamada Escola Histórica. Significativa, neste sentido, a obra do civilista alemão Gustav Hugo (1764-1844). No primeiro volume de seu Lehrbuch eines civilistischen Kursus (2.ª edição, 1799), cuja introdução contém uma enciclopédia jurídica, ele propõe, segundo um paradigma kantiano, uma divisão tripartida do conhecimento científico do direito, correspondente a três questões fundamentais: Dogmática Jurídica (que responde ao problema: que deve ser reconhecido como de direito - de jure -?); Filosofia do Direito (cujo problema é: é racional que o reconhecido como de direito assim o seja?); História do Direito (como aquilo que é reconhecido como de direito se tornou tal?). Esta tripartição, observava o próprio Hugo, sob o ponto de vista da temporalidade, podia transformar-se numa bipartição, à medida que a primeira e a segunda questão se ligam ao presente e a terceira ao passado. Por outro lado, a primeira e a terceira são históricas, mas não a segunda.