Confesso que ainda consigo me surpreender com os seres humanos. Tanto quando se trata de coisas boas, como quando se trata de coisas ruins. Ontem, mais uma foi adicionada à segunda lista.
Imagine a situação: um ser humano em angústia por sentir que não pode mover o lado direito de seu corpo. A fala torna-se totalmente enrolada, como se aquela pessoa estivesse em completo estado de embriaguez. Este ser humano fica desorientado, afinal, está no meio do trabalho e sob os olhares de milhares, talvez milhões de pessoas. Talvez tenha até sentido uma fortíssima dor na cabeça.
Com muito esforço, este ser humano consegue alertar a quem está do seu lado que precisa de atendimento médico. A quantidade de leigos no assunto só aumenta o desespero e a descoordenação no atendimento, que enfim acontece. Com muita luta, o ser humano com tamanho sofrimento é colocado em uma ambulância para ser levado a uma emergência hospitalar.
No meio de tanto sofrimento e desespero, outros seres humanos ainda acharam tempo para fazer uma piada de muito mau gosto e de nenhuma graça. Ao verem a necessidade de atendimento médico evoluir para o deslocamento em ambulância, o grupo começa a gritar "uh, vai morrer!". Certamente este comportamento aumentou a angústia tanto dos envolvidos no atendimento como o do próprio ser humano vítima da emergência médica.
Se você ainda não sabe a que evento eu me refiro, deve estar se perguntado: "o que será que essa criatura fez para merecer tamanha covardia? Seria ele um ditador, ou um psicopata em série, ou um torturador convicto?". A resposta é não. E olha que nesses casos ainda acho desprezível que alguém se comporte assim.
Sabe qual era o motivo para que o grupo de pessoas atacasse de forma tão desprezível aquele ser humano em necessidade de atendimento médico? Ele é o treinador do Vasco da Gama, time rival daquele para o qual o grupo de pessoas torce (o Flamengo).
E então eu me pergunto: em que momento nos tornamos tão pequenos, tão ridículos, tão desprezíveis a ponto de não respeitarmos o sofrimento dos outros simplesmente porque estes outros torcem para times com os quais não simpatizamos? Em que momento o futebol passou a ocupar um lugar tão fundamental em nossas vidas a ponto de perdemos o respeito, inclusive por nós mesmos? Em que momento a vida passou a ser resumida entre os que estão do nosso lado, porque torcem para o mesmo time, e os que estão do outro lado, porque torcem para outro time?
Ainda estou em choque com o ocorrido. Vi minha mãe ter um avc isquêmico há dois anos e sei o desespero que senti. Só posso imaginar o quanto tudo seria pior se houvesse um grupo desprezível de seres que se dizem humanos a gritar durante o atendimento "uh, vai morrer!".
Infelizmente, o desprezo pelo outro, pela vida humana, parece ser um padrão nos últimos tempos. Ainda neste mês vimos um camarote desabar no início de um show de Ivete Sangalo e a cantora afirmar que nada pararia o seu show. Pessoas são assassinadas e espancadas por serem gays, nordestinos, negros, mulheres... e a lista aumenta. Que educação é esta que vem sendo utilizada pelas famílias, igrejas, escolas? Que leitura os fervorosos religiosos vêm fazendo do "Ama a teu próximo como a ti mesmo"? Ama só se ele for do mesmo time, se não for negro, se não for mulher, se não for gay, se não torcer para outro time, se não atrapalhar nossos compromissos?
Não aceito e não consigo entender tal mentalidade. E se você achou engraçado o grito "uh, vai morrer" direcionado ao técnico vascaíno Ricardo Gomes pela torcida do Flamengo, tente se colocar no lugar de quem enfrentou a emergência. Certamente você não verá graça alguma.