segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Sem anistia

Ontem, eu estava tranquilamente assistindo a um filme na Apple TV+ empacado há muito tempo na minha lista de obras quando fui alertada por Janaina para colocar na Globo News porque o Congresso Nacional estava sendo invadido. Sem acreditar, troquei rapidinho de aplicativo e lá estavam as cenas horrorosas, asquerosas, inacreditáveis de vilipêndio não só ao patrimônio público, mas à República brasileira.

Não houve surpresa, apenas incredulidade por ver a transformação imposta por golpistas/terroristas a prédios tão simbolicamente representativos da Democracia sem que houvesse qualquer resistência factível das forças policiais, antes tão efetivas em desfazer protestos de muito menor monta e de muito menor potencial virulento e que jamais intentaram invadir um Poder da República, como os empreendidos por estudantes, professores, e outras tantas comunidades vistas como minorias na sociedade.

A cada nova imagem, um rasgo no coração. Era a nossa História que estava sendo barbaramente destruída em nome de um projeto político descaradamente golpista por não aceitar a derrota imposta nas urnas eleitorais. Obras de arte, documentos históricos de valor inestimável, equipamentos eletrônicos, móveis, absolutamente tudo foi alvo da sandice selvagem de cunho terrorista. 

Um misto de horror, tristeza e revolta era o sentimento entre todas as pessoas democratas deste país. As outras preferiram ou comemorar abertamente, ou promover falsas simetrias ou outras formas de linguagem em códigos - o famoso dog whistle ou apito de cachorro (só o cachorro é capaz de ouvir e entender, humanos não captam), ou simplesmente calaram-se ante os fatos por elas de alguma forma desejados.

Os horrendos vídeos, como a de um policial e seu cavalo sendo espancados por um grupo armado de paus e ferros, fizeram surgir uma onda nacional pugnando não só pela dispersão dos golpistas, mas por sua identificação e penalização tanto civil como criminalmente, bem como dos tantos outros que estimularam e estimulam, financiaram e financiam atos que visam descaradamente abolir o Estado Democrático de Direito.

Esse movimento não é de hoje e nas ruas pode ser abertamente apontado o ano de 2013 como o ano em que sua cara foi exposta em rede nacional. Amealhou muitas pessoas inocentes que não percebiam que mais e mais davam apoio a uma pauta potencialmente fascista, já que era "contra tudo que aí está". Era contra muita coisa, mas ninguém sabia ao certo a que ela era favorável.

De lá para cá, houve uma piora considerável no respeito à nossa Constituição pela maior autoridade deste país. Ainda na campanha presidencial de 2018, o candidato que despontou nada projetava de gestão, mas tão-somente era "contra tudo que aí está". Elegeu-se sem propostas concretas, com um lema abertamente fascista (como faz falta o apreço às lições de História neste país!) e prometendo "fuzilar" seus adversários. Quando assumiu, nunca deixou de ser candidato de si mesmo, jamais sendo presidente nem por um dia sequer.

A cada dia, traçava uma nova linha do limite da impunidade tanto para crimes comuns como para crimes de responsabilidade no exercício da presidência da República. Aos primeiros sinais de que o país não aguentava mais a incursão pela perversidade, a receita mundial da extrema direita foi mais uma vez posta em prática: alegou-se fraude eleitoral num país cujo sistema eleitoral eletrônico é reconhecido mundialmente e talvez um dos poucos motivos de orgulho frente a países do chamado primeiro mundo.

A receita seguiu em prática com a fuga de um por um para os EUA, todos temendo o peso da lei, isso porque juram que são a favor da lei e da ordem. Culminou num movimento que transformou porta de quartéis, antes territórios em que mal podíamos parar um carro para uma pessoa descer/subir, num verdadeiro cabaré em que manda quem pode pagar mais pelos lotes de água mineral e distribuição de frutas e bandeiras (e sabe-se lá o que mais ante os vídeos alucinados por eles mesmo publicados) por mais de 70 dias.

Talvez enjoados do local do cabaré, levaram sua porcalhada para promover um verdadeiro escárnio dos símbolos da República. Vejam como a nova linha do limite da impunidade foi se deslocando da presidência para todos os níveis da República do Brasil.

Parece que agora, enfim, as instituições acordaram. Depois de todos os vidros quebrados, de todos os documentos rasgados, das obras de arte destruídas e até dos policiais atingidos (lembram do político que jogou granadas em policiais federais ainda na eleição?), parece que enfim entenderam que a tal nova linha do limite da impunidade não podia mais ser movida um só centímetro sequer, sob pena de perecermos todos num mergulho total na escuridão do totalitarismo fascista, que quer nos dizer o que comer, o que beber, o que ler, o que ver, o que assistir, o que pensar e no que crer. 

Como admitir que algo que pede o fim da democracia seja um movimento (ou como dizem os inocentes - com e sem aspas -, apenas atos) democrático? Não parece óbvio que a democracia aguenta tudo, menos que acabem com ela? Basta ler a Constituição e consultar o Código Penal para entender tamanha obviedade.

1.500 golpistas/terroristas foram detidos em Brasília e arredores, inclusive já fugindo em ônibus por rodovias federais. Estão prestando depoimento e há robustas provas fornecidas por seus próprios celulares. Puxar esse fio vai fazer com que todo o esquema golpista venha à tona, inclusive na parte em que servidores públicos, fardados ou não, atuaram como bandidos infiltrados para corroer nossa democracia.

O que o Brasil hoje espera é que sejamos capazes de não cometer o mesmo erro de quando se enterrou a ditadura neste país. Na época, achamos por bem fingir que ninguém de farda cometera crime algum contra a humanidade no exercício do poder do Estado e criamos uma jaboticaba brasileira, com uma anistia dada para quem exerceu a força sem limites constitucioinais dentro dos poderes instituídos.

Não podemos cair no erro do fim da década de 1980 e que nos assola novamente. Aliás, de 30 em 30 anos, desde que deixamos de ser colônia, sofremos do comichão golpista de quem usa a farda neste país e também de quem detém o verdadeiro poder econômico-financeiro (classe média, por favor, se enxergue, porque você não passa de massa de manobra) para bagunçar as peças do tabuleiro democrático, justamente porque nunca fomos atentos o suficiente para punir como a lei manda quem planeja/executa golpe de estado, ainda que tentado.

A hora é de aprender com os erros para que essa turminha golpista volte para as catacumbas de onde saiu depois de mais de 30 anos amufambada e remoendo as mágoas que a democracia trouxe, não sem antes prestar contas com a devida responsabilização, seja de cunho penal, seja de cunho civil.

O clamor no Brasil desde o show de horrores a que assistimos particularmente no último domingo é um só: sem anistia. Que sejam todas essas criaturas nefastas, que desejam o mal da democracia e agem para sua derrocada, investigadas, processadas e punidas, desde o tio do zap que serve de pombo correio para amealhar manipuláveis para servirem de bucha de canhão até os perversos maiores, escondidos no financiamento por meio de testas de ferro para encherem as burras à custa da República do Brasil.

A democracia também se faz na distribuição justa das punições. Pois façamos agora o que deixamos de fazer há mais de 30 anos e tratemos também de expurgar das fardas, quaisquer que sejam elas, civis ou militares, quem se acha no direito de dobrar os poderes da República aos seus próprios interesses.

O sentimento é e tem que ser um só: sem anistia!

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