Esta é a penúltima parte da interessante exposição dos meandros do STF pela revista Veja em maio deste ano. Para ler as anteriores, clique em parte 1, parte 2, parte 3, parte 4, parte 5, parte 6.
IV
A conflagração
A senhora de pedra que toma conta do Supremo Tribunal Federal esqueceu de trazer a balança. A espada ela trouxe, e a conserva bem segura, apoiada nas pernas e uma ponta agarrada a cada mão. Venda nos olhos, balança e espada são os apetrechos clássicos da Justitia. O destaque à espada, na versão brasiliense, somado ao esquecimento da balança, sugere múltiplas interpretações. Fiquemos com uma: o clima no STF está mais para cortantes golpes que para ponderações e equilibrismos.
Ministro A: "Precisamos ficar atentos a isso. Esse tipo de manobra não pode ser feito com o Supremo Tribunal Federal. Ah, agora vou dar uma de esperto e conseguir a decisão do aborto. De preferência na turma, com 3 ministros. Aí a gente faz um 2 a 1...".
Ministro B: "Me deixa de fora desse seu mau sentimento. Você é uma pessoa horrível, uma mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia. É um absurdo vossa excelência vir aqui e fazer um comício cheio de ofensas e grosserias".
A é o ministro Gilmar Mendes e B é Luís Roberto Barroso, como os leitores bem sabem. O assunto levantado por Mendes, a descriminalização do aborto até o terceiro mês da gravidez, decidida por iniciativa de Barroso pela Primeira Turma do tribunal, nada tinha a ver com a pauta discutida no pleno naquele dia. Emergiu porque os dissensos são profundos, os ânimos estão tensos e os rancores estão em alta. As espadas com aço duro e lâmina afiada entre os dois ministros, em março, indiferentes às sutilezas da esgrima, entraram para a história do Supremo Tribunal Federal por dois motivos: 1) pela virulência; 2) pela circunstância, inédita até onde a vista alcança, de um ministro tratar o outro por "você" ("Você é uma pessoa horrível").
"O momento no mundo é tomado de posições afirmativas em excesso", diz a presidente Cármen Lúcia, incluindo o conflito num contexto mais alto. "O dissenso é extremamente saudável", afirma o ministro Fachin. Tribunais são feitos mesmo para dissentir, e "o dissenso mostra que o colegiado é incapturável". São apreciações diplomáticas. Há uma divisão profunda no STF, e o fator desencadeador resume-se em duas palavrinhas: Lava-Jato. A operação desencadeada em Curitiba provocou na corte rachaduras que se explicitam em três níveis: o primeiro no piso térreo dos partidarismos, o segundo no piso intermediário das posturas dos juízes em face das penas e o terceiro no alto plano das concepções teóricas.
No nível térreo a dissensão no tribunal corresponde às dissensões na política e na sociedade. Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski são os ministros com currículo e atuação mais ligados à política, e portanto aos políticos. O primeiro trabalhou nos governos Collor e FHC e é próximo do governo Temer. O segundo foi consultor da CUT, assessor jurídico da bancada do PT na Câmara e, no governo Lula, subchefe de Assuntos Jurídicos da Casa Civil e advogado-geral da União. O terceiro trabalhou junto a administrações do PMDB na prefeitura de São Bernardo do Campo e no governo de São Paulo e, no julgamento do mensalão, fez o contraponto ao rigor do relator Joaquim Barbosa.
Nenhum deles admitirá que os vínculos e as preferências políticas interfiram na atividade de juiz. Também não se deve considerar que sejam o único fator. Mas, além de juízes, são pessoas inseridas na sociedade, e como tal portadores de preferências políticas. Mendes, Toffoli e Lewandowski consolidaram-se nos últimos meses como um trio de ferro contra o que consideram avanços indevidos e arbitrariedades da Operação Lava-Jato. Nos debates, atuam cada vez mais fechados, ainda que provindos de campos políticos opostos - Gilmar Mendes é adversário declarado do PT, enquanto os outros dois são próximos ao partido. "Você já reparou como eles só citam a eles mesmos?", cochichou um ministro a seu vizinho, numa sessão recente. Um antigo observador do tribunal diagnostica: "O acordo entre eles é: você salva os meus que eu salvo os teus";
No campo oposto ficam o relator da Lava-Jato, Edson Fachin, seguido de Barroso, Fux e Cármen Lúcia, sempre, e Rosa Weber quase sempre. "Nosso grupo partilha uma comunhão ideológica", diz Fux. O grupo reflete a parte mais vocal da sociedade em seus reclamos de uma faxina na política e uma revolução nos meios e métodos de fazer campanhas, atuar no Parlamento e governar. Os dois lados, como na teoria dos jogos, fazem seus lances com o olho no lance seguinte. Jogam a ficha numa aposta que pode até não ser de seu particular agrado, mas contando com a perspectiva de que receberão em dobro na mão seguinte. Celso de Mello, Marco Aurélio e Alexandre de Moraes oscilam entre um campo e outro e definem os resultados.
No piso intermediário insere-se uma palavra ausente nos dicionários, mas invocada com boca cheia nas cortes - "garantismo", da qual se deriva "garantista". Garantista é o juiz que garanta a liberdade e a inocência do réu até a dissipação da última dúvida. Há garantistas de ocasião, que não o foram quando o réu era da tendência política contrária. Garantista acima de qualquer suspeita é o ministro Marco Aurélio. Suas convicções fazem-no defender a reversão do julgamento que tornou possível a prisão após condenação em segundo grau. O garantismo é um princípio nobre, que não deve ser confundido com defesa da impunidade, mas que é mais bem compreendido quando respalda um réu pobre e negro, detido sem julgamento numa das masmorras brasileiras, do que quando a serviço de um político ou de um empresário.
No plano elevado situam-se as concepções sobre a natureza e o alcance da Constituição e do Supremo Tribunal Federal. O ministro Barroso, entre outras teses em sua prolífica atividade de publicista, professor e palestrante, defende que os supremos tribunais têm um "papel iluminista" a desempenhar. Nesse papel, exemplifica, a Suprema Corte dos Estados Unidos garantiu os direitos civis dos negros e sua equivalente em Israel baniu a tortura aos palestinos. O papel iluminista autorizaria interpretações constitucionais que, ao romper impasses na sociedade, nos parlamentos e nos governos, abrem espaço para o avanço civilizacional.
A tese causa polêmica. Dá ensejo a uma leitura aberta das constituições, despregada da literalidade do texto, e a uma atuação das cortes que arrisca invadir as atribuições de outros poderes. Dias Toffoli assim resume sua diferença filosófica com o colega: "Barroso diz: 'Vamos descobrir o futuro'. Eu respondo: 'Não, vamos com calma'". Gilmar Mendes identifica uma leitura licenciosa da Constituição, quando não deturpada, em decisões tomadas ultimamente. Na sessão que limitou o foro privilegiado dos parlamentares, afirmou: "Tenho que, neste caso, o Supremo não está verdadeiramente interpretando a Constituição Federal, mas a reescrevendo".
Os três níveis da discórdia se fazem presentes, misturados, nas votações de 6 a 5 ou, no máximo, 7 a 4 que têm caracterizado o normal das sessões plenárias. Nas duas turmas em que se divide o tribunal calhou de o trio Mendes/Dias Toffoli/Lewandowski ficar em uma e o trio Barroso/Fux/Rosa Weber na outra. Isso garante que cada um dos grupos rivais se imponha na respectiva turma. Fachin, relator da Lava-Jato, faz parte da Segunda Turma, e perde sempre. Quando leva a questão ao plenário, como fez com o habeas-corpus de Lula, vence. As turmas ganharam dos políticos o apelido de "Jardim do Éden" - a Segunda, que absolve sempre - e "Câmara de gás" - a Primeira, que condena. Em setembro o equilíbrio entre elas se alterará. Dias Toffoli, assumindo a presidência, deixa a Segunda Turma, e será substituído por Cármen Lúcia. A vida ficará mais fácil para Fachin.
Ministro A: "Precisamos ficar atentos a isso. Esse tipo de manobra não pode ser feito com o Supremo Tribunal Federal. Ah, agora vou dar uma de esperto e conseguir a decisão do aborto. De preferência na turma, com 3 ministros. Aí a gente faz um 2 a 1...".
Ministro B: "Me deixa de fora desse seu mau sentimento. Você é uma pessoa horrível, uma mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia. É um absurdo vossa excelência vir aqui e fazer um comício cheio de ofensas e grosserias".
A é o ministro Gilmar Mendes e B é Luís Roberto Barroso, como os leitores bem sabem. O assunto levantado por Mendes, a descriminalização do aborto até o terceiro mês da gravidez, decidida por iniciativa de Barroso pela Primeira Turma do tribunal, nada tinha a ver com a pauta discutida no pleno naquele dia. Emergiu porque os dissensos são profundos, os ânimos estão tensos e os rancores estão em alta. As espadas com aço duro e lâmina afiada entre os dois ministros, em março, indiferentes às sutilezas da esgrima, entraram para a história do Supremo Tribunal Federal por dois motivos: 1) pela virulência; 2) pela circunstância, inédita até onde a vista alcança, de um ministro tratar o outro por "você" ("Você é uma pessoa horrível").
"O momento no mundo é tomado de posições afirmativas em excesso", diz a presidente Cármen Lúcia, incluindo o conflito num contexto mais alto. "O dissenso é extremamente saudável", afirma o ministro Fachin. Tribunais são feitos mesmo para dissentir, e "o dissenso mostra que o colegiado é incapturável". São apreciações diplomáticas. Há uma divisão profunda no STF, e o fator desencadeador resume-se em duas palavrinhas: Lava-Jato. A operação desencadeada em Curitiba provocou na corte rachaduras que se explicitam em três níveis: o primeiro no piso térreo dos partidarismos, o segundo no piso intermediário das posturas dos juízes em face das penas e o terceiro no alto plano das concepções teóricas.
No nível térreo a dissensão no tribunal corresponde às dissensões na política e na sociedade. Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski são os ministros com currículo e atuação mais ligados à política, e portanto aos políticos. O primeiro trabalhou nos governos Collor e FHC e é próximo do governo Temer. O segundo foi consultor da CUT, assessor jurídico da bancada do PT na Câmara e, no governo Lula, subchefe de Assuntos Jurídicos da Casa Civil e advogado-geral da União. O terceiro trabalhou junto a administrações do PMDB na prefeitura de São Bernardo do Campo e no governo de São Paulo e, no julgamento do mensalão, fez o contraponto ao rigor do relator Joaquim Barbosa.
Nenhum deles admitirá que os vínculos e as preferências políticas interfiram na atividade de juiz. Também não se deve considerar que sejam o único fator. Mas, além de juízes, são pessoas inseridas na sociedade, e como tal portadores de preferências políticas. Mendes, Toffoli e Lewandowski consolidaram-se nos últimos meses como um trio de ferro contra o que consideram avanços indevidos e arbitrariedades da Operação Lava-Jato. Nos debates, atuam cada vez mais fechados, ainda que provindos de campos políticos opostos - Gilmar Mendes é adversário declarado do PT, enquanto os outros dois são próximos ao partido. "Você já reparou como eles só citam a eles mesmos?", cochichou um ministro a seu vizinho, numa sessão recente. Um antigo observador do tribunal diagnostica: "O acordo entre eles é: você salva os meus que eu salvo os teus";
No campo oposto ficam o relator da Lava-Jato, Edson Fachin, seguido de Barroso, Fux e Cármen Lúcia, sempre, e Rosa Weber quase sempre. "Nosso grupo partilha uma comunhão ideológica", diz Fux. O grupo reflete a parte mais vocal da sociedade em seus reclamos de uma faxina na política e uma revolução nos meios e métodos de fazer campanhas, atuar no Parlamento e governar. Os dois lados, como na teoria dos jogos, fazem seus lances com o olho no lance seguinte. Jogam a ficha numa aposta que pode até não ser de seu particular agrado, mas contando com a perspectiva de que receberão em dobro na mão seguinte. Celso de Mello, Marco Aurélio e Alexandre de Moraes oscilam entre um campo e outro e definem os resultados.
No piso intermediário insere-se uma palavra ausente nos dicionários, mas invocada com boca cheia nas cortes - "garantismo", da qual se deriva "garantista". Garantista é o juiz que garanta a liberdade e a inocência do réu até a dissipação da última dúvida. Há garantistas de ocasião, que não o foram quando o réu era da tendência política contrária. Garantista acima de qualquer suspeita é o ministro Marco Aurélio. Suas convicções fazem-no defender a reversão do julgamento que tornou possível a prisão após condenação em segundo grau. O garantismo é um princípio nobre, que não deve ser confundido com defesa da impunidade, mas que é mais bem compreendido quando respalda um réu pobre e negro, detido sem julgamento numa das masmorras brasileiras, do que quando a serviço de um político ou de um empresário.
No plano elevado situam-se as concepções sobre a natureza e o alcance da Constituição e do Supremo Tribunal Federal. O ministro Barroso, entre outras teses em sua prolífica atividade de publicista, professor e palestrante, defende que os supremos tribunais têm um "papel iluminista" a desempenhar. Nesse papel, exemplifica, a Suprema Corte dos Estados Unidos garantiu os direitos civis dos negros e sua equivalente em Israel baniu a tortura aos palestinos. O papel iluminista autorizaria interpretações constitucionais que, ao romper impasses na sociedade, nos parlamentos e nos governos, abrem espaço para o avanço civilizacional.
A tese causa polêmica. Dá ensejo a uma leitura aberta das constituições, despregada da literalidade do texto, e a uma atuação das cortes que arrisca invadir as atribuições de outros poderes. Dias Toffoli assim resume sua diferença filosófica com o colega: "Barroso diz: 'Vamos descobrir o futuro'. Eu respondo: 'Não, vamos com calma'". Gilmar Mendes identifica uma leitura licenciosa da Constituição, quando não deturpada, em decisões tomadas ultimamente. Na sessão que limitou o foro privilegiado dos parlamentares, afirmou: "Tenho que, neste caso, o Supremo não está verdadeiramente interpretando a Constituição Federal, mas a reescrevendo".
Os três níveis da discórdia se fazem presentes, misturados, nas votações de 6 a 5 ou, no máximo, 7 a 4 que têm caracterizado o normal das sessões plenárias. Nas duas turmas em que se divide o tribunal calhou de o trio Mendes/Dias Toffoli/Lewandowski ficar em uma e o trio Barroso/Fux/Rosa Weber na outra. Isso garante que cada um dos grupos rivais se imponha na respectiva turma. Fachin, relator da Lava-Jato, faz parte da Segunda Turma, e perde sempre. Quando leva a questão ao plenário, como fez com o habeas-corpus de Lula, vence. As turmas ganharam dos políticos o apelido de "Jardim do Éden" - a Segunda, que absolve sempre - e "Câmara de gás" - a Primeira, que condena. Em setembro o equilíbrio entre elas se alterará. Dias Toffoli, assumindo a presidência, deixa a Segunda Turma, e será substituído por Cármen Lúcia. A vida ficará mais fácil para Fachin.