De volta ao retrato das entranhas do STF feito pela Veja (Roberto Pompeu de Toledo) em maio deste ano, segue abaixo a parte 2.
Clicando aqui, o leitor pode conferir a parte 1 para não ficar perdido, apesar de eu duvidar muito que isso ocorra pela independência das partes em que o texto foi dividido. Mas vale conferir cada pedacinho.
É com a decantada arte da hospitalidade mineira que a ministra Cármen Lúcia acolhe o autor deste trabalho. Estamos na sala da presidência do STF, ampla, de talvez mais de 100 metros quadrados, para a primeira das prometidas visitas aos ministros. Ela convida o visitante a aproximar-se da mesa, mas evita sentar-se na cadeira do chefe. Toma assento a seu lado, nas cadeiras opostas; uma terceira cadeira é ocupada pela diretora de Comunicação Social que trouxe para trabalhar consigo, a jornalista Mariangela Hamu. Vem à baila o assunto das pichações no prédio de sua residência em Belo Horizonte, e Mariangela informa que Cármen Lúcia vai assumir a despesa pelo estrago. "Não tem jeito, a responsabilidade é minha", diz a ministra. (Outro assessor informará que a operação não será simples, e a despesa pode chegar à casa dos 30.000 reais.) O assunto seguinte é o "trabalho insano" que a ministra encontrou na presidência. A função implica cuidar da administração da casa, assumir em paralelo a presidência do Conselho Nacional de Justiça e exercer os papéis de representação do Judiciário perante os outros poderes e os países estrangeiros. Não bastasse, a presidente ainda vota nas sessões plenárias, como os outros ministros, o que acarreta ter de estudar os assuntos e preparar os votos. Em 19 de janeiro do ano passado, depois de meses sem sair de Brasilia, ela decidiu ir a Belo Horizonte para visitar o pai. Ao desembarcar no Aeroporto de Confins, soube da morte do ministro Teori Zavascki; de imediato, tomou um avião de volta.
O Supremo Tribunal Federal acumula três funções. É um tribunal de apelações, em primeiro lugar, e nele desembocam os recursos, "ordinários e extraordinários", das ações que já esgotaram as três instâncias anteriores. Também lhe cabe responder à saraivada de pedidos de habeas-corpus que, por via direta, podem vir tanto de humildes presidiários como de figurões da política. Em segundo lugar é um tribunal constitucional, encarregado de, ao interpretar a Constituição, harmonizar a legislação do país e fixar diretrizes às instâncias judiciais inferiores. E em terceiro lugar, sua função hoje mais vistosa, é um tribunal penal de primeira instância, incumbido de julgar os detentores de cargos públicos com prerrogativa de foro. Isso lhe acarreta um total anual de processos hoje na casa dos 48.000, e que já foi maior. Era de 75.000 quando Cármen Lúcia se encontrou com a justice (nome que se dá aos ministros por lá) Sonia Sotomayor, da Suprema Corte dos Estados Unidos. "Setenta e cinco mil?", estranhou a americana. "Você quer dizer 75..." Não, era 75.000 mesmo, e Sotomayor perguntou: "E você tem tempo para dormir?". Na Suprema Corte americana os ministros escolhem, no início de cada ano, entre as 5.000 ações recebidas, as que vão julgar - seja por considerá-las as mais prementes, sob o ponto de vista da fixação de uma interpretação constitucional, seja por vê-las como as mais agudas entre as demandas e os conflitos a reclamar pacificação na sociedade. As escolhas nunca somam mais de 100, a ser destrinchadas ao longo do ano. As ações que ficam de fora, irresolvidas, considera-se que resolvidas estão.
Cármen Lúcia é a segunda mulher a ser nomeada ministra do STF e a segunda a presidi-lo. Nas duas condições, foi antecedida por Ellen Gracie, nomeada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Um amigo de Ellen Gracie ouviu-a queixar-se de um tratamento, da parte dos colegas, que ia de observações descuidadas a invasões de seu gabinete para lhe dar lições. Essa circunstância teria pesado em sua decisão de ir embora. E Cármen Lúcia, que diria a respeito? "Não reclamo, mas tenho sensibilidade para a questão", responde. No julgamento do habeas-corpus de Lula, Cármen Lúcia e Rosa Weber foram interrompidas e contestadas de modo brusco pelos ministros Marco Aurélio e Lewandowski. O que um e outro queriam dizer a uma e outra, segundo a jornalista Giuliana Vallone, da Folha de S.Paulo, era: "Não, querida, você não está fazendo sentido, deixa eu te explicar". Para Cármen Lúcia, "nós mulheres trabalhamos mais para chegar ao mesmo lugar". Cita o caso da primeira mulher a ser promovida a embaixadora do Brasil - ela dizia que era exibida "como um troféu" - e antes da despedida conduz o visitante até a outra extremidade da sala, para mostrar-lhe as duas fotos de Sebastião Salgado que mandou pendurar na parede. São duas enormes e impressionantes imagens de Serra Pelada e da Floresta Amazônica. "A destruição e a conservação", explica Cármen. A despedida requer cuidado. Ela está pesando 37 quilos. Dá medo de, a um toque mais distraído, machucá-la.
Em setembro, a presidência será transferida a Dias Toffoli. Seu gabinete é nossa próxima parada. Na antessala há um retrato a óleo representando-o no momento da posse. "Foi presente de um amigo", explica a chefe de gabinete, Daiane Nogueira. O retratado veste o traje de gala, toga mais robusta e mais vistosa e colarinho alto, de branco imaculado, ressaltando da camisa. De óculos (atualmente ele não os usa mais) e cabelos repartidos para o lado (hoje ele os puxa para trás), tem na mão a caneta com que assina o termo de posse num grosso livro. O sorriso apenas esboçado é de satisfação,e a fisionomia muito jovem, tão jovem, e com tão vetustos trajes, que se diria um formando da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, onde estudou, mas do século XIX, não de sua época.
A formalidade, os ritos e a vetustez são marcas do Supremo Tribunal Federal. Antes os costumes eram ainda mais rígidos, explica Dias Toffoli, ao iniciarmos a conversa. Não se podia dispensar a gravata nem no interior dos gabinetes. (Toffoli está neste momento de colarinho aberto, sem gravatá e sem paletó.) A antiguidade se fazia valer mesmo na relação entre os carros oficiais dos ministros, cujas placas ostentavam numeração tanto mais baixa quanto mais antigo fosse seu ocupante. O ministro aposentado Carlos Veloso conta que, ainda novato na corte, pediu ao motorista que acelerasse, porque estava atrasado para um compromisso. O motorista respondeu que não podia fazê-lo porque à frente ia o carro de ministro mais antigo. Havia uma etiqueta entre os veículos. Hoje os carros não mais se identificam como do STF, por questões de segurança - mas a antiguidade ainda se faz valer na distribuição dos ministros em plenário, o decano no primeiro lugar à direita da mesa da presidência, o segundo mais antigo no primeiro à esquerda, o terceiro no segunda lugar à direita, e assim num trançado até o nomeado mais recente. Antes, continua Dias Toffoli, a antiguidade prevalecia mesmo na mesa retangular em que era servido o lanche, no intervalo das sessões. Na presidência do ministro Nelson Jobim (2004-2006), uma mesa redonda substituiu a retangular, e acabaram-se as precedências.
Dias Toffoli faz boa descrição da natureza e do alcance da posição que em breve lhe caberá. "A figura do presidente do Supremo deve ser vista por duplo ângulo: antes e depois de Nelson Jobim, e antes e depois do Conselho Nacional de Justiça, ambos coincidentes no tempo", explica. Até então, o presidente era uma figura secundária. O STF era (e continua sendo) pequeno, e administrá-lo revelava-se "uma beleza", diz Toffoli - tarefa fácil. Mais importante e mais poderosa era a outra presidência que a lei reserva a um ministro do STF, a do Tribunal Superior Eleitoral. É um órgão maior, de capilaridade que o imbrica nos tribunais regionais, e de decisiva importância política. Dias Toffoli diz já ter ouvido dos ex-ministros Carlos Velloso e Sepúlveda Pertence que foram mais felizes na presidência do TSE do que na do STF. Para que gosta de gestão, permite inovações como a criação da urna eletrônica e, agora, da identificação biométrica do eleitor.
Ao presidente do STF não cabia nem comandar a pauta, função hoje tão decisiva e que tem gerado críticas a Cármen Lúcia, por não pautar ações contrárias à prisão depois da condenação em segunda instância. A pauta ficava por conta da burocracia da casa, que a consolidava numa "papeleta". O presidente pedia a papeleta ao secretário do tribunal e seguia a ordem nela contida. Foi Jobim quem, na presidência, introduziu a "pauta dirigida", ao talante do presidente.
A criação do Conselho Nacional de Justiça, em 2004, e sua instalação, em 2005, representaram reforço ainda mais considerável aos poderes da presidência. O presidente do Supremo passou a ser, simultaneamente, presidente do CNJ, e com isso o título de "chefe do Poder Judiciário", que já lhe era atribuído, mas tinha apenas valor simbólico, ganhou efetividade. Ao CNJ cabe vigiar a totalidade da magistratura nacional e punir seus desvios e desmandos. "O desembargador de não importa que estado ou o juiz singular sabem que o presidente do STF, na condição de presidente do CNJ, pode vir a puni-los", diz Toffoli. "Isso é particularmente importante", acrescenta, "quando se sabe que historicamente os juízes se mesclaram às elites locais." O CNJ, ao investigar tudo, passou a exercer "uma violência simbólica". Dito isso, Toffoli mais não diz. Fica para setembro anunciar o que fará, uma vez investido dos poderes da presidência.