Li um texto duro, mas consciente sobre esse mal que insiste em afligir a humanidade: a tortura. Foi escrito por Marcelo Rubes Paiva, escritor e jornalista (atualmente colunista do Estadão), que teve o pai Rubens Paiva, que ajudava perseguidos pela ditadura a fugir do Brasil, arrancado de casa e torturado até a morte em 1971. Destaco trechos e recomendo a leitura completa na edição especial de Veja 45 anos, que saiu no mês de Setembro (páginas 52-56) sob o título "Um tormento que não acaba":
(...)
"A tortura sempre existiu. Apesar de ser considerada crime inafiançável, continua existindo. Existiu em arenas romanas, nas masmorras da Idade Média, nos castelos e pelourinhos. Foi patrocinada por imperadores, reis, papas, ditadores de direita e de esquerda. Está lá, sempre presente, quando um estado precisa subjugar seus inimigos. Por que a tortura nunca acaba? E serve para quê?
Para apressar, com eficiência duvidosa, a conclusão de uma investigação criminal. Para encontrar desaparecidos (...), comparsas, mandantes. Para desbaratar quadrilhas. Como vingança. Para destroçar um indivíduo, reforçar quem manda, dar senso de camaradagem a uma comunidade fechada, como um satânico rito grupal primitivo. Para unir sob uma bandeira fraca. Para humilhar. (...)
O torturador, que tem pai, filho, esposa, amigos, vida pública, aquele que faz compras, viaja de férias, se irrita no trânsito, paga impostos, poupa, vota, protesta, enfim, que planeja o futuro, pensa no seu gesto? Ou apenas cumpre ordens? Executa uma rotina trivial sem distinguir o certo do errado? Vive na banalização do mal sem questionar moralmente os efeitos do que pratica?
As respostas levam a uma direção: a tortura não é apenas a ferramenta de um poder instável, autoritário, que necessita da violência impensável para se firmar, ou uma aliança sádica entre facínoras, estadistas psicopatas, lideranças de regimes que se mantêm pelo terror, e seus comandados. Muitas vezes, aparenta ser uma ação de um grupo isolado. Não. A tortura é patrocinada pelo estado. Até mesmo regimes democráticos que priorizam o bem social, defendem a liberdade e a igualdade, até eles promovem a tortura.
(...)
Não é o agente fulano, o oficial sicrano, quem perde a mão. É a instituição, e sua rede de comando hierárquica, que tortura. A nação patrocinadora da dor infligida. O poder, emanado do povo ou não, suja as mãos de sangue.
No dia 20 de janeiro de 1971, seis agentes da Aeronáutica invadiram a minha casa no Rio com metralhadoras e levaram meu pai, Rubens Beyrodt Paiva, ex-deputado do PTB, cassado pela ditadura em 1964, para a Base Aérea do Galeão. Uma enviada do Chile, a professora Cecília Viveiros de Castro, presa no aeroporto, havia ligado pouco antes para ele, dizendo que lhe trazia cartas e documentos de exilados brasileiros. Meu pai auxiliava, como muitos no Brasil, a fuga de perseguidos pela ditadura, escondia lideranças banidas, socialistas ou comunistas, em casa, ajudava financeiramente estudantes cassados. Como José Serra, um maltrapilho esfomeado que perambulava por Paris depois de expulso do Brasil.
Meu pai apanhou assim que chegou à III Zona Aérea. Levou uma coronhada de uma submetralhadora, desferida pelo brigadeiro João Paulo Burnier, que estourou sua carótida, segundo a professora. Ambos foram transferidos no assoalho de um carro no dia seguinte para a sede do DOI-Codi, no quartel do I Exército. Foram obrigados a ficar em pé de capuz com as mãos para cima durante horas.
Cecília o ouviu gritar, soletrar seu nome inúmeras vezes. Foi torturado até a morte. Há 42 anos convivo com essa informação bloqueada por uma censura nos pensamentos. Quando, por algum deslize, aparece na imaginação a imagem do meu pai em um pau de arara, ela logo é reprimida. Não combina. Não dá para visualizar. Meu pai era um homem calmo, bom, engraçado, frágil. E vaidoso. O que mais lembram dele? Da gargalhada, que fazia tremer a casa. Fumava charutos. Gostava de comer do melhor. De viajar. Gostava de Paris. Chegou a morar lá, aos 20 anos, a uma quadra do Sena. Passou um ano na Europa, com os três irmãos, em 1947, para testemunhar a reconstrução de uma terra arrasada, o que mudou a sua visão de mundo.
(...) Imaginar este sujeito boa boa-praça, aos 41 anos, nu, em um pau de arara, levando choques aos gritos de 'Fala,comunista, safado! Terrorista!', apanhando até a morte... Não dá. Não encaixa.
Como não dá para imaginar o sóbrio, calvo e sorridente jornalista Vladimir Herzog em um pau de arara. Nem dois outros jornalistas, Rodolfo Konder e Paulo Markun, nem universitários, nem professores (como os meus do colegial, Benauro Roberto de Oliveira, de história, e Luiz Roncari, de literatura). Nem a presidente Dilma. (...)
Relatos dizem que meu pai pedia água a todo momento, enquanto era torturado. No final, banhado em sangue, repetia apenas o seu nome. Por horas. 'Rubens Paiva. Rubens Paiva. Rubens Paiva...' Quem detalhou isso para VEJA (edição de 3 de setembro de 1986) foi Amilcar Lobo, ex-médico, que o viu no DOI-Codi do Rio de Janeiro: ' Ele era uma equimose só. Estava roxo da ponta dos cabelos à ponta dos pés. [...] Eu nunca havia presenciado um quadro desse tipo. Aquele homem levara uma surra como eu nunca vira. Fiquei na cela com ele uns quinze minutos. Estava consciente. Não gemia. Disse só duas palavras: Rubens Paiva'.
Se a tortura não faz sentido, é ineficiente, por que então é presença cativa e devastadora na nossa história? Graças à impunidade garantida por lei. Também bancada pelo estado, que a quer aliada, que não se livra do moedor de carne, pois interessa tê-la por perto. O governo Obama não fechou Guantánamo. Você se lembra de algum agente brasileiro acusado de tortura ter sido preso? Quem torturou até a morte o meu pai foi absolvido pela Lei da Anistia. Foram depois promovidos e aposentados. Sabe quem são? Amilcar Lobo citou o nome do coronel José Ney Fernandes Antunes. O tenente Armando Avólio Filho, do Pelotão de Investigações Criminais (PIC), foi quem lhe disse depois que meu pai fora morto. Francisco Leite Chaves, procurador-geral da Justiça Militar, acusou o coronel Ronald José da Motta Batista Leão, o subtenente Ariedisse Barbosa Torres, o major Riscala Corbage, o segundo-sargento Eduardo Ribeiro Nunes e o capitão de cavalaria João Câmara Gomes Carneiro como responsáveis pela morte do meu pai. Um ofício do dia 22 de janeiro de 1971 encontrado pelo jornalista Jason Tércio indica o major Francisco Demiurgo Santos Cardoso como 'major-chefe do DOI/I Ex'.
As agendas do meu pai foram entregues ao major José Nogueira Belham, segundo ofício encontrado recentemente na casa de outro oficial do DOI, coronel Molinas Dias. De Belham, sei até o endereço, no bairro do Flamengo, no Rio. O jornal Correio Braziliense descobriu recentemente que seu filho, Ronaldo Martins Belham, é diretor adjunto da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Um herdeiro da máquina de moer carne no cérebro do poder."
Meu pai apanhou assim que chegou à III Zona Aérea. Levou uma coronhada de uma submetralhadora, desferida pelo brigadeiro João Paulo Burnier, que estourou sua carótida, segundo a professora. Ambos foram transferidos no assoalho de um carro no dia seguinte para a sede do DOI-Codi, no quartel do I Exército. Foram obrigados a ficar em pé de capuz com as mãos para cima durante horas.
Cecília o ouviu gritar, soletrar seu nome inúmeras vezes. Foi torturado até a morte. Há 42 anos convivo com essa informação bloqueada por uma censura nos pensamentos. Quando, por algum deslize, aparece na imaginação a imagem do meu pai em um pau de arara, ela logo é reprimida. Não combina. Não dá para visualizar. Meu pai era um homem calmo, bom, engraçado, frágil. E vaidoso. O que mais lembram dele? Da gargalhada, que fazia tremer a casa. Fumava charutos. Gostava de comer do melhor. De viajar. Gostava de Paris. Chegou a morar lá, aos 20 anos, a uma quadra do Sena. Passou um ano na Europa, com os três irmãos, em 1947, para testemunhar a reconstrução de uma terra arrasada, o que mudou a sua visão de mundo.
(...) Imaginar este sujeito boa boa-praça, aos 41 anos, nu, em um pau de arara, levando choques aos gritos de 'Fala,comunista, safado! Terrorista!', apanhando até a morte... Não dá. Não encaixa.
Como não dá para imaginar o sóbrio, calvo e sorridente jornalista Vladimir Herzog em um pau de arara. Nem dois outros jornalistas, Rodolfo Konder e Paulo Markun, nem universitários, nem professores (como os meus do colegial, Benauro Roberto de Oliveira, de história, e Luiz Roncari, de literatura). Nem a presidente Dilma. (...)
Relatos dizem que meu pai pedia água a todo momento, enquanto era torturado. No final, banhado em sangue, repetia apenas o seu nome. Por horas. 'Rubens Paiva. Rubens Paiva. Rubens Paiva...' Quem detalhou isso para VEJA (edição de 3 de setembro de 1986) foi Amilcar Lobo, ex-médico, que o viu no DOI-Codi do Rio de Janeiro: ' Ele era uma equimose só. Estava roxo da ponta dos cabelos à ponta dos pés. [...] Eu nunca havia presenciado um quadro desse tipo. Aquele homem levara uma surra como eu nunca vira. Fiquei na cela com ele uns quinze minutos. Estava consciente. Não gemia. Disse só duas palavras: Rubens Paiva'.
Se a tortura não faz sentido, é ineficiente, por que então é presença cativa e devastadora na nossa história? Graças à impunidade garantida por lei. Também bancada pelo estado, que a quer aliada, que não se livra do moedor de carne, pois interessa tê-la por perto. O governo Obama não fechou Guantánamo. Você se lembra de algum agente brasileiro acusado de tortura ter sido preso? Quem torturou até a morte o meu pai foi absolvido pela Lei da Anistia. Foram depois promovidos e aposentados. Sabe quem são? Amilcar Lobo citou o nome do coronel José Ney Fernandes Antunes. O tenente Armando Avólio Filho, do Pelotão de Investigações Criminais (PIC), foi quem lhe disse depois que meu pai fora morto. Francisco Leite Chaves, procurador-geral da Justiça Militar, acusou o coronel Ronald José da Motta Batista Leão, o subtenente Ariedisse Barbosa Torres, o major Riscala Corbage, o segundo-sargento Eduardo Ribeiro Nunes e o capitão de cavalaria João Câmara Gomes Carneiro como responsáveis pela morte do meu pai. Um ofício do dia 22 de janeiro de 1971 encontrado pelo jornalista Jason Tércio indica o major Francisco Demiurgo Santos Cardoso como 'major-chefe do DOI/I Ex'.
As agendas do meu pai foram entregues ao major José Nogueira Belham, segundo ofício encontrado recentemente na casa de outro oficial do DOI, coronel Molinas Dias. De Belham, sei até o endereço, no bairro do Flamengo, no Rio. O jornal Correio Braziliense descobriu recentemente que seu filho, Ronaldo Martins Belham, é diretor adjunto da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Um herdeiro da máquina de moer carne no cérebro do poder."