Mal sentei nos bancos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e o professor de Introdução à Ciência do Direito nos apresentou uma lista de livros de leitura obrigatória para aquele semestre. O primeiro deles: O Caso dos Exploradores de Cavernas, de Lon Fuller.
Não o comprei, mas contei com a gentileza de um amigo de sala que me emprestou para a leitura, coisa que fiz com a devida celeridade. Bem sei da dor que é emprestar um livro. Já houve caso, confesso, que preferi presentear quem me pediu com um outro exemplar para não correr o risco de ter meu dileto livro maltratado. Alguém assim certamente leria sem nem impor um ângulo amplo de abertura do exemplar, hábito que conservo até com revistas.
Bem, nesse domingo, topei com artigo de Marcelo Alves Dias de Souza, membro da PGR e doutor em Direito pelo King's College London e Mestre em Direito pela PUC/SP, abordando justamente o livrinho (em tamanho, não em importância) que deveria ser de leitura obrigatória para todo(a) aluno(a) de Direito.
Descobri, por exemplo, que Fuller foi professor de Ronald Dworkin, idolatrado no Direito Constitucional.
Seguem abaixo alguns trechos do valioso artigo publicado na página 4 do caderno Natal, mas desde já recomendo a leitura do artigo completo no jornal ou no site da Tribuna do Norte, e, claro, do próprio livro, mesmo para quem não é da área.
(...)
Embora parcialmente inspirado em casos reais - U.S. v. Holmes (1842) e Regina v. Dudley & Stephnes (1884), com naufrágios em alto-mar e homicídio/canibalismo nos respectivos botes salva-vidas -, "O caso dos exploradores de cavernas" é uma obra de ficção.
O ano é 4300. E a coisa se passa na (fictícia) Suprema Corte de Newgarth, que julga um recurso de apelação dos réus contra a condenação, à morte por enforcamento, pelo Tribunal de Primeira Instância do Condado de Stowfield. Cinco exploradores de uma tal Sociedade Espeleológica ficaram presos em uma caverna após um grande deslizamento de terra. São resgatados, mas apenas quatro deles, após trinta e dois dias ali presos. O custo financeiro e humano do resgate, com dez operários mortos, é enorme. Descobre-se em seguida que os exploradores firmaram um contrato entre si, para que um deles fosse sorteado e sacrificado para servir de comida aos demais, evitando assim a morte de todo o grupo por inanição. O pacto foi sugerido por um tal Roger Whetmore, o que veio a ser morto (e comido), mesmo tendo proposto, posteriormente, a anulação do pacto. Segundo a letra da lei do país, está-se diante de um homicídio, com previsão de pena de morte. Assim decidiu o júri de primeira instância. Pede-se clemência ao chefe do Poder Executivo. Apela-se à corte superior. Cinco magistrados - o presidente Truepenny e os seus colegas juízes Foster, Tatting, Keen e Handy - são encarregados de revisar o caso.
Antropofagia ou canibalismo não é um tipo penal autônomo no direito brasileiro. Todavia, nada mais repugnante ao homem (civilizado, aqui suponho), talvez até mais que o homicídio em si, do que esse "estranho" comportamento de alimentar-se da carne do seu semelhante. (...)
Entretanto, em "O caso dos exploradores de cavernas", para a aplicação do direito ao caso concreto, a coisa não parece assim tão preto no branco. O homicídio seguido do canibalismo é temperado pelo estado de necessidade e a falta de esperança dos envolvidos. A escolha da vítima contratualmente e pela sorte dá um toque a mais ao caso. A desistência contratual é válida? Qual o peso da simpatia para com os réus e da comoção popular em tais casos? A condenação pelo júri tem sempre um quê de discricionaridade. Qual a lei aplicável? Qual o precedente aplicável? O perdão cai bem no caso? E tudo isso é analisado levando em consideração as muitas escolas da filosofia do direito - o jusnaturalismo, o positivismo, o historicismo, o consequencialismo e por aí vai -, o que empresta ao caso as mais diversas nuances.
É-nos apresentado, enfim, um caso em que diferentes vereditos se mostram possíveis. Essa diversidade de julgamentos escancara ao leitor a amplitude do direito e a dificuldade da sua aplicação. O nosso próprio "julgamento" sucessivamente posto à prova toda vez que nos vemos diante de distintas interpretações dos fatos e de diferentes soluções para o caso, todas porém convincentes, constantes dos votos proferidos pelos cinco juízes da Corte Suprema.
E aí, acredito, está a lição deste livrinho: no direito, assim como na vida, existem meias verdades e verdades e meia. Ambas têm os seus pecados. Uma lição que deve ser aprendida pelos "donos do direito" de hoje. Aqueles com títulos, que fazem um uso indevido dos poderes do Estado. E, também, pelos chamados "idiotas da aldeia". Eles que vivem canibalizando a opinião diferente, jurídica ou não, dos outros.