Recentemente o Brasil parou para acompanhar - confesso que eu não pude me juntar à audiência por afazares acima dos normais - uma decisão do STF que teria implicações no rumo dos processos oriundos da Lava Jato.
A questão era se crimes especiais puxariam ou não crimes comuns para a jurisdição especial. Traduzindo: um crime eleitoral obriga ou não que os crimes comuns a ele conexos sejam julgados na Justiça Eleitoral?
Algumas coisas ficaram fora de tom na discussão, algo muito comum num país cuja população resolveu se entregar de vez ao papel de torcida organizada de políticos, contra ou a favor.
Primeiro, é preciso esclarecer que a Constituição brasileira é muito recente. 30 anos, quando se trata de consolidação de entendimentos judiciais, são pouco, especialmente se considerarmos quantas constituições já tivemos - 7 antes da atual (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967). Para ilustrar nossa peculiaridade, os EUA têm a mesma Constituição - com emendas, claro - desde 1776...
Esses entendimentos sofrem, em maior ou menor medida, influência da evolução dos tempos, da sociedade e dos avanços tecnológicos.
Segundo, o Brasil ainda se acostuma com as dores e as delícias da democracia, uma vez que sua História é toda picotada por golpes de Estado e regimes ditatoriais.
Terceiro, é do Direito existirem correntes diversas. Um dos embates mais duradouros é segurança jurídica x efetividade das decisões. O que vale mais: seguir um caminho já traçado pela legislação, meio que ao pé da letra, ainda que isso sacrifique a efetividade e o alcance das decisões judiciais, ou favorecer essa efetividade sacrificando uma certa estabilidade das interpretações judiciais, ferindo a segurança jurídica? O embate é interessante e persiste.
No meio de tudo isso, temos uma nação em crise de identidade, que finalmente tem achado feio o que o espelho da política lhe mostra. Mas não podemos esquecer que um espelho não consegue inventar um reflexo. Se queremos mudar a imagem que ali vemos, devemos começar a mudança em nós mesmos. Temos que começar com pequeníssimas coisas, como respeitar regras. Respeitar filas, inclusive no trânsito, já seria um bom começo.
Dito tudo isso, é sim uma pena que o STF tenha decidido que crimes de caixa 2 atraem para a Justiça Eleitoral os crimes comuns que lhes são conexos. Ainda que a decisão não seja esdrúxula do ponto de vista da segurança jurídica, ela é praticamente letal à efetividade tão almejada nos novos tempos no Brasil. Explico.
A Justiça Eleitoral é inexistente no Brasil. Ela não tem um corpo próprio de magistrados. A cada 2 anos, ela pega emprestado juízes, desembargadores e ministros de outros tribunais, além de nomeações dentro do quinto constitucional (OAB e MP). E esse pessoal todo não deixa de exercer suas funções originais, não. Ou seja, é praticamente uma Justiça para inglês ver, algo bem ao gosto dos políticos de carreira.
A justificativa seria evitar perseguições políticas com a eternização de um magistrado numa comarca eleitoral, como se não houvesse recursos e mais recursos disponíveis para as mais variadas instâncias, inclusive o STF.
Enfim, fosse a Justiça Eleitoral brasileira um primor de celeridade e efetividade ao punir crimes eleitorais, possivelmente não estaríamos na situação atual, com uma nação dividida em torcidas organizadas que fecham os olhos para crimes de seus políticos de estimação e só apontam malandragens nos outros.
Logo, teme-se, com muita razão, uma enxurrada de prescrições fulminando os crimes conexos. Ora, se nem dos eleitorais a Justiça emprestada tem dado conta, avaliem crimes mais sofisticados e que muito pouco tem a ver com as eleições.
Aí vejo as torcidas organizadas voltarem suas baterias contra o último pilar do cidadão frente a um Estado que se nega a cumprir a Constituição: o STF. Por inocência ou má-fé mesmo, ninguém busca mudanças que tornem a Justiça Eleitoral efetiva, como a adoção de um corpo próprio de magistrados, só para começar a conversa. Preferem atacar o STF. Não é preciso muita inteligência para saber o que se esconde por trás disso, mas a galera segue feliz como bucha de canhão, sem trocadilho intencional.
Não gostei da decisão do STF, mas preciso reconhecer que há base para ela, mesmo eu tendo uma interpretação diversa. Agora é hora de quem deseja efetividade da Justiça Eleitoral cobrar seus representantes no Congresso para empreenderem essa mudança, tornando-a perene, longe da rotatividade atual e da cumulação de funções. Duvido que as torcidas, que são muito bem organizadas pelos partidos, queiram lutar por tal solução.
Melhor mesmo é desacreditar todo o Judiciário, fechar tudo e tudo ficar submetido à caneta de quem mais manifestações de apoio conquistar. Assim, dá para esconder ainda mais crimes, não apenas os eleitorais e os com eles conexos.
Definitivamente o espelho não é o culpado.