sexta-feira, 14 de junho de 2024

Não há paz

Há várias coisas sobre ser mulher. Coisas que só outra mulher compreende. O medo de andar só na rua.  De pegar um Uber. O medo da simpatia ser compreendida como incentivo. O medo do julgamento da sociedade para cada detalhe do que comemos, bebemos, vestimos, usamos, dizemos. 

Há também as dores físicas, emocionais. A cólica menstrual jamais será sentida por um homem. O incômodo de utilizar, portar, trocar absorventes. Dos desmaios súbitos. Dos remédios que não resolvem, ou causam enjoo, ou dor de cabeça, ou inchaço, ou engordam, ou prejudicam progressivamente esôfago, estômago, intestino. 

Há também as expectativas dos outros que sempre sabem como resolver a sua vida. "Você não deveria ter feito isso", "Você deveria ter cortado logo", "Será que você não interpretou errado?", "Ele é homem, tem suas necessidades", são julgamentos somente a nós direcionados.

De uns tempos para cá, é que não há mesmo paz para nenhuma de nós. A luta sempre foi incessante por igualdade. Queremos ter o direito de trabalhar, de nos relacionarmos com quem quisermos e até de não nos relacionarmos com quem quer que seja, de praticar o esporte que desejarmos, enfim, de vivermos a vida em sua plenitude como é dado aos homens. Mas sempre que avançamos, surgem vozes a nos infernizar.

Já não basta termos que lidar com as mais variadas seitas religiosas absolutamente voltadas para a supremacia dos homens e o total aniquilamento da mulher como um ser humano. Agora querem a todo custo que o fundamentalismo religioso vire a lei suprema do nosso ordenamento jurídico, espancando o Estado democrático de Direito e a ordem constitucional fundados em 1988.

Se é bem verdade que há algumas mulheres, coitadas, que apoiam o movimento que as rebaixa, mais verdade ainda é que esse movimento é pensado, fundado e arraigado nas mentes de homens medievais, que nos enxergam desde sempre como sub-raça, criaturas apenas existentes para lhes servir como eles bem entendam.

Por isso recebemos menos, já que o nosso sustento deve sempre estar atrelado a um homem - primeiro o pai, depois o marido. Não podemos jamais ter um salário compatível com a necessidade de nos livrarmos do jugo masculino.

Por isso também devemos vestir burcas e vivermos enfurnadas nas nossas casas, já que qualquer homem tem o direito de nos assediar, nos abusar, nos estuprar. Há um conluio para culpar vítimas, ainda que muitas delas sejam estupradas justamente dentro de casa, nem tendo muitas vezes idade suficiente para escolher as próprias roupas.

Há quase uma década passamos a conviver com um movimento reacionário que quer a volta ao passado. Nos EUA, é Donald Trump, que, vendendo Bíblias, jura que quer fazer o país rezar de novo enquanto defende abertamente que mulheres sejam absolutamente impedidas de abortar, direito constitucionalmente garantido desde os anos 1970 e que já caiu em muitos estados americanos porque o agora condenado por comprar o silêncio de uma atriz sobre relação sexual que manteve com ela, além de muitas outras terríveis acusações, fez questão de mudar a composição de uma Corte que garantia o respeito aos direitos constitucionais das pessoas americanas. No Brasil, a personificação deste movimento abjeto, que agora tenta acabar com o aborto legal que aqui é garantido desde 1940, é Jair Bolsonaro, que já disse a uma deputada que não a estuprava porque ela era feia (ou seja, se fosse bonita, no conceito dele, estuprava) e que havia "pintado um clima" com uma menina de 15 anos numa viagem dele.

Quando a gente se livra de uma coisa, surge outra, e simplesmente não há paz. O ataque mais recente às mulheres, depois de muitos atentados de Conselhos de Medicina Brasil afora (como a tortura de fazer com que mulheres que vão abortar legamente tenham que ouvir os batimentos fetais e até ver a imagem do feto), é penalizar o aborto legal cometido por vítimas de estupro com pena maior do que a do estuprador. Vejam, eu disse aborto legal. Legal, permitido pela lei. Se é permitido, não há o que criminalizar. Mas querem criminalizar o que já nos é garantido. Não basta que outros se apoderem dos nossos corpos. Agora querem nos obrigar a conviver com o fruto da violência sob pena de prisão. Para as mulheres restam dois caminhos, além do dano emocional eterno: ser presa por 20 anos e não ser obrigada a conviver com o fruto do estupro sofrido, ou ser obrigada a olhar diariamente para o fruto da violência que lhe esmagou a alma para não ficar numa prisão por 20 anos. O estuprador, se for pego, já que o processo criminal é nova tortura para a vítima, fica só com a metade disso.

Há quase 20 anos, vi a luta de uma mãe, salvo engano no interior da Bahia, para que sua filha de 9-10 anos tivesse o aborto legal executado após sofrer inúmeros estupros dentro de casa e engravidar. Na época, fui obrigada a ouvir um padre (ora, ora, um homem) que mais parecia um demônio ameaçar a menina e a mãe de excomunhão se acabassem com a violência de uma criança gerar outra por ter sido estuprada. O estuprador nunca sofreu tamanha ameaça. Agora, tenho o desgosto de ver o Congresso Nacional, especialmente o Presidente da Câmara dos Deputados (ora, ora, um homem), querer dar nó em pingo d'água para aumentar a tortura a que as mulheres, inclusive crianças, são submetidas. Não basta o estupro, é preciso dilacerar a vítima até que nada mais sobre de sua essência.

Peço desculpas por ter enfatizado o termo "homem". Deveria ter trocado por "macho". Isto porque há homens que nos alcançam pela empatia. De todo jeito, a luta é nossa porque só nós sabemos nos nossos corpos o que tudo isso significa.  

O alerta é para as mulheres. Não há paz numa sociedade estruturalmente machista, e que rapidamente envereda para a misoginia. Não há paz com seitas religiosas que não nos reconhecem como iguais e somente exaltam figuras masculinas, seja na adoração, seja em sua hierarquia. Abram os olhos antes que seja tarde demais.

Se os homens, inclusive machos, não enxergam que não há paz quando um estado é dominado pelo fundamentalismo religioso porque imaginam que serão sempre cultuados e adorados, leiam ou assistam a "O Conto da Aia" (The Handmaid's Tale) de Margaret Atwood, escrito sob o medo do que pregava Ronald Reagan nos EUA e que tão bem se encaixa nos momentos que vivemos. O livro virou série disponível na Prime Video, na Globoplay, na Star+/Disney, e em vários streamings mundo afora.

Se a arte não convence, olhem para o Afeganistão do Talibã de Osama Bin Laden. As mulheres sofrem infinitamente mais, é verdade. Mas homens não passam incólumes. Até porque não cabem todos no topo do poder. 

Lugar de seita religiosa é na igreja e na sua casa. E só.

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