sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Sinceridade inesperada

A sinceridade não deveria ser inesperada. Deveria ser absoluta, diária, fatal. Mas as regras de etiqueta nos impedem de um convívio sufocante com ela. Desde o "bom dia" que não queremos dar ao "tudo bem" quando tudo vai mesmo é muito mal. No Direito, diríamos que é o princípio da sinceridade mitigada. Ou seja, a sinceridade sofre alguns temperamentos para que não seja absoluta e transforme o dia-a-dia num convívio infernal.

De vez em quando, encontro exemplos de sinceridade chocante porque inesperada, principalmente pelos motivos já expostos. Isto ocorreu por 4 vezes nesta semana. Deve ter ocorrido mais, no entanto, foram essas 4 vezes que chamaram a minha atenção, coincidentemente ou não, através da leitura, vício insanável para mim.

O primeiro choque veio com matéria do jornal O Globo a que tive acesso através do Facebook. Lá estava estampada a foto de uma linda menininha tomando banho num bueiro em pleno Rio de Janeiro. A foto em si já seria chocante por natureza, mas não foi isso que me fustigou. Ante a realidade de um pai embriagado que pediu à equipe de reportagem dinheiro, a garotinha, do alto da maturidade de seus prováveis 5 anos vividos no mais amplo sofrimento, de imediato retrucou: "Não dê dinheiro a ele não, moço. Ele vai gastar tudo.". Até agora, a sinceridade cortante dessa menina me enche os olhos de lágrima ao ter que dar de cara com a reportagem de novo.

O segundo foi menos brutal, mas não menos polêmico. Abro a Veja da semana e encontro uma delícia de entrevista com Marco Bobbio, médico e filho do grande jusfilósofo Norberto Bobbio, nas páginas amarelas. Aos 63 anos, o italiano é quem dirige um dos centros de referência em cardiologia em seu país. O médico simplesmente não confia na medicina preventiva! A reportagem chega mesmo a citar que a cada 5 exames, um apresenta resultado falso positivo ou falso negativo, ao que ele excetua a mamografia e a colonoscopia. Em sua opinião, a medicina evoluiu "para manter uma pessoa viva por muito mais tempo, mas ainda não foi possível desenvolver mecanismos que possam proporcionar qualidade de vida aos pacientes em idade avançada." Uau! É um médico que fala! Não satisfeito, Marco Bobbio ainda cravou: "os médicos estão muito arrogantes, impondo seu ponto de vista a todo custo." Faltaria a tais profissionais parar de se concentrar na doença para ouvir o paciente e saber dele como e se ele quer se tratar, sem imposições. Além de ser preciso deixar a vida seguir seu curso, mesmo que isto signifique abrir mão de uma entubação em idade avançada, ou mesmo quebrar uma dieta rígida, para que, enfim, se coma e beba de tudo (tudo mesmo!) um pouco. Mais: ele, cardiologista, não faz check-ups. Nem exame de sangue, nem PSA, nem ecocardiograma, nada. Fiquei estupefata.

O terceiro tem um que de insulto, mas necessário. Estou eu ainda lendo a Veja quando chego a uma entrevista com Shirley MacLaine, atriz americana de 80 anos de idade. Aliás, não só atriz, mas autora e, em ambos os casos, vigorosamente atuante. Pois bem. Ante a realidade de que vai lançar um livro no próximo ano cuja publicação tem exigido maior conhecimento em e-books, design de páginas eletrônicas e criação de conteúdo on-line, surgiu a pergunta sobre se ela teria perfil nas redes sociais. Reposta: "Não, de jeito nenhum! Odeio redes sociais porque sinto que elas estão afastando as pessoas dos contatos reais, além de fazê-las idiotas." Um soco no estômago foi o que senti com as palavras de MacLaine. Fui obrigada a concordar, já que, de fato, os contatos reais andam mesmo em falta, ao passo que os virtuais crescem exponencialmente. Só não sei se nos tornamos idiotas com isso ou se isso apenas aflora a idiotice que já nos pertencia...

O quarto é mais leve. É sinceridade no aspecto de revelar o sentimento de quem fala, não de exprimir a verdade por si mesma. Nem por isso deixa de ser inesperado e interessante. No fim de seus textos na Tribuna do Norte de sexta-feira, Nei Leandro de Castro costuma publicar um pensamento da semana. O de hoje pertence a Roberto Rodrigues Roque e merece reflexão pelo estereótipo que faz das mulheres. Ou não. "Quem gosta de homem é gay. Mulher gosta é de cartão de crédito." Eu gosto do meu cartão de crédito, mas já faço a ressalva de que ele é pago com o meu suor de cada dia. Queria saber se homens heteros não gostam de cartão de crédito. E os homens gays? 

Como esses 4 exemplos ficaram fervilhando em minha cabeça, resolvi compartilhar esse comichão por aqui. Afinal, sinceridade em estado puro é coisa rara de se ver.

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