De tempos em tempos, o mundo convive com algum novo tipo de Inquisição, movimento da Igreja Católica na Idade Média que queria proibir o acesso das pessoas aos livros que ela, igreja, denominava como blasfêmia. A ignorância religiosa, então, privou o mundo sabe-se lá de quantas obras importantes tanto da Idade Antiga como da Idade Média, haja vista o que conseguiu chegar ainda que clandestinamente até aqui.
A arte traz conforto em muitos casos. O que seria de nós na fase mais dura da pandemia sem os livros, filmes, séries e até shows musicais que nos rodeavam, principalmente por streaming?
No entanto, a arte é para incomodar mesmo, provocar reflexões e questionamentos. Dizem que a arte imita a vida. Por que então temos tanta aversão a ela a ponto de querermos impor a outras pessoas os conceitos que carregamos e por que nos empenhamos em impedir que elas formem os seus próprios?
Ano após ano, surge algum movimento de censura. A grita maior é sempre por pornografia. O que é pornográfico? Se o pensar é abstrato, é claro que os conceitos que envolvem a arte também estão embebidos de abstracionismo.
A censura, neste caso e na maioria dos casos, nada tem de proteção, e sim de absoluto totalitarismo. Não quero que as outras pessoas pensem diferente de mim, gostem de coisas de que não gosto, consumam o que eu não consumo, creiam (ou não creiam) em seres diferentes dos seres de minha adoração.
Pior que também não é nada raro encontrarmos pessoas que defendem a censura apenas por temerem a tal teoria do espelho, quando eu não gosto do que aparece de mim na imagem refletida. Ou seja, quando a arte revela o íntimo que se julga protegido dos olhares das outras pessoas, a arte incomoda.
Assim, esses movimentos apenas botam para fora o acúmulo de preconceitos que são prolongados pelos que procuram uma falsa aceitação de pares que são tão ou mais imperfeitos do que aquelas pessoas a quem julgam do salto de seus pedestais, especialmente o religioso.
Poderia dar mil exemplos aqui e este texto ficaria enorme, ainda maior do que já é. Vou me ater aos dois exemplos mais recentes porque atingem mais fortemente as mulheres: a "pornografia" do show de Madonna e o "satanismo" do novo clipe de Anitta que nem lançado ainda foi. Mas é claro que há também a "porcaria" do BBB, a "putaria" do funk... e por aí vai.
Sobre o show de Madonna, confesso que não entendi o choque. São 40 anos de carreira em que Madonna faz exatamente isso que o show apoteótico de Copacabana mostrou. Aliás, o mundo só conhece Madonna porque ela sempre fez questão de incomodar com questões relevantíssimas sobre liberdade sexual, aborto, religião, Aids e as enormes barreiras sociais que são impostas exclusivamente às mulheres, às pessoas LGBTQIA+ e a todas as pessoas que de alguma forma estão à margem da sociedade, como latinas, imigrantes em geral (legalizadas ou não), pretas, e, agora, idosas.
Na década de 1990, Madonna ousou fazer no palco uma representação de uma masturbação feminina. Vejam bem, representação. Ameaçaram-na de prisão na Itália. Prisão! Não seria apenas uma questão das pessoas mais sensíveis à masturbação feminina simplesmente não irem ao show que consideram de péssimo gosto?
Por aqui, o povo que costuma dizer que não assiste a "Globolixo" simplesmente enfrentou um atraso de quase 1 hora num show já tarde da noite para ver a diva no palco num show que celebrava o quê? Quarenta anos de uma carreira focada em quebrar esse tipo de barreira. O que esperavam ver? Madonna lendo a Bíblia? Bem, ela apareceu vestida como beata, de crucifixo na mão, fazendo o sinal da cruz. Teve incenso e todo aquele ritual. O que ela faz é revelar o óbvio: toda pessoa beata é uma pessoa. E toda pessoa, da mais pobre à mais rica, da menos ilustrada à mais ilustrada, da não crente à crente, tem desejos e necessidades inerentes à raça humana. Ela pelo menos beija e agarra pessoas que querem ser beijadas e agarradas num espetáculo performático e teatral para o qual as pessoas se dirigiram para ver sabendo o que iam encontrar, ao contrário dos inúmeros escândalos que envolvem gente que vive com a Bíblia debaixo do braço, como os casos de pedofilia de padres e de pastores, feitos às escondidas, se bem que um dos mais recentes inclusive foi revelado pelo próprio pastor, em culto (!), quando disse queria ser "o primeiro homem de sua filha" ainda adolescente. Nesse caso, não creio que as pessoas que se dirigiram para a igreja esperavam uma revelação de pedofilia em pleno altar, mas acharam graça, como revelado em vídeo. Joga-se pedra no espetáculo e dá-se risada de um crime sexual. Onde ficou a lógica?
Agora a apedrejada da vez é Anitta por revelar que vai lançar um clipe sobre sua religião, o candomblé. Anitta tem seguido o mesmo caminho trilhado bravamente pela pioneira Madonna: questionar os padrões e provocar reflexões nas mais variadas questões sociais. O candomblé é uma religião como outra qualquer. A base é a crença, nada científico. Por que então eu vou condenar uma determinada seita e acolher outras? É igual a querer que todo mundo torça pelo mesmo time de futebol. Não faz o menor sentido.
Todas as pessoas têm o direito de torcer pelo time que quiserem e até de não torcer para time algum e nem de futebol gostar. É assim também na religião: todas as pessoas têm o direito de crer na seita que melhor lhes aprouver e até de não pertencer a seita alguma e nem crer em coisa alguma. O que todas as pessoas merecem e devem prestar é respeito pelas crenças e preferências alheias até para que suas crenças e preferências sejam também respeitadas. Crença não se discute porque não há argumentos racionais para justificá-la. Crê-se ou não. Simples assim.
A arte é o maior atributo distintivo do ser humano. Só o ser humano produz arte. Só o ser humano contempla arte. Só o ser humano reflete a partir da arte. Se determinada expressão artística lhe incomoda, ela também já atingiu seu objetivo. A arte nos engrandece até quando nos irrita porque ela expande nossas reflexões e ajuda a nos distinguir de um mero gado pastando no aguardo do abate. Pensamos, logo existimos, como bem resumiu René Descartes.
Você tem todo o direito de não gostar de determinada expressão artística, mas quanto mais você reage a ela, mais você a justifica. Afinal, a arte é para incomodar mesmo. O que não cabe é o totalitarismo de uma pessoa determinar o que todas as outras devem ver, ouvir, ler, gostar.
Se você não gosta da arte de Madonna, de Anitta, do BBB, de funk, de sertanejo, de heavy metal, não a consuma. É um direito seu. Mas deixe em paz a diversidade artística porque ela apenas reflete o mundo diverso, rico, lindo em que vivemos.
E para a galerinha da Bíblia-desodorante tão em voga ultimamente, já passou da hora de entender que o sentido de "Amar o próximo como a ti mesmo" é amar o diferente porque todas as pessoas não são iguais. Se não entendeu ainda, crie vergonha na cara, tire a Bíblia debaixo do braço e vá de fato ler o que nunca leu de verdade até entender a pregação de Jesus Cristo nos Evangelhos.