Há muito tempo, o dia internacional da mulher era dedicado à distribuição de flores e ficava por isso mesmo. Parecia até uma duplicata do dia das mães pelo menos nas ações do comércio e das escolas.
A iniciativa é fofa, mas não deixa de ser uma afronta à memória das que deram a vida lutando por condições pelo menos melhores para as mulheres não só no trabalho, mas na sociedade em geral.
Quando passamos a prestar um pouco mais de atenção nas coisas ao nosso redor, é inevitável o susto com o tratamento que ainda recebemos até da legislação.
O Código Civil atual, por exemplo, é de 2002. Até ele entrar em vigor, existia dispositivo no anterior que permitia a anulação de um casamento simplesmente por não ser mais a mulher virgem, uma excrescência nunca cobrada dos homens. Foi a Constituição de 88 que impediu que muitas dessas excrescências continuassem a nos diminuir a capacidade para a vida civil.
Mas nem tudo ficou para trás há muito tempo. É deste ano legislação que impede que cirurgias de esterilização feminina só possam ser realizadas se o cônjuge assinar consentimento!!! A quem pertence mesmo o corpo?
Prefiro nem discutir a questão do aborto por aqui porque faltaria espaço para expor tanta aberração.
Quando olhamos para a indústria do entretenimento, a dor aumenta. Filmes de ação, por exemplo, têm uma enorme dificuldade de trazer protagonistas mulheres ou pelo menos personagens mulheres que tenham uma linha de estória desenvolvida. Acabamos sendo aquelas donzelas sempre em perigo ou que estão ali apenas para recompensar o protagonista homem com um beijo no final. Isso se repete em filmes de terror, filmes policiais e até em comédias românticas e, em menor escala, dramas. Dizem até que quase não há diálogos entre personagens mulheres que não acabem girando em torno de interesse nos personagens homens. Ou seja, toda a existência das mulheres na indústria cultural é voltada para os homens. Parece até que não temos outros afazeres nem interesses na vida.
Na hora de decidir os rumos da cidade, do estado e do país, somos maioria na sociedade, mas isso não aparece nos mandatos eletivos.
Somos comprovadamente melhores motoristas (é só consultar as estatísticas das companhias seguradoras), mas ainda temos que lidar com piadinhas sem graça e sem lógica sobre mulheres no trânsito.
Sofremos mensalmente por anos com as dores da menstruação e passamos longe de termos medo de dentista ou receio de fazermos anualmente um exame preventivo ginecológico super invasivo, mas inventaram por aí que somos o sexo frágil.
Até o método anticoncepcional mais cheio de efeitos colaterais é o que sobrou para as mulheres, nos obrigando a lidar com dores de cabeça e inchaços, só para citar os mais comuns. A pílula dos homens nunca foi para a frente por falta de interesse em expô-los a qualquer tipo de incômodo, afinal, para que existem as mulheres, não é mesmo?
Aliás, a medicina nem consegue nos ver como pacientes com características próprias. O infarto feminino, por exemplo, de sintomas bem diferentes dos que são apontados como caraterísticos de um infarto, só veio a surgir aqui e ali na mídia depois que muitas celebridades que sofreram com ele começaram a fazer campanhas por conta própria para alertar para essa invisibilidade da paciente mulher.
Sobre trabalho, ontem vi uma reportagem na Folha de S.Paulo dando conta de que as mulheres são muito mais escolarizadas do que os homens em SP, mas são eles que detêm os melhores salários. É fácil entender: a visão é sempre de que somente os homens estão preparados para cargos de liderança. Há um teto de vidro que impede a progressão das mulheres, que é justamente essa visão ridícula de que somos incapazes.
Pior mesmo é ver mulheres reproduzindo comportamentos machistas contra outras mulheres. Há uma desavença entre uma mulher e um homem por um motivo de trabalho ou de negócio, por exemplo? "Ela deve ser apaixonada por ele", respondem. Interessante é que nunca é o homem que insiste na desavença porque é apaixonado por ela...
E se a mulher grita na luta por seus direitos? "É uma louca, chata", apontam. Os mesmos gritos vindos de uma garganta masculina são apenas reflexos de um temperamento forte, de quem luta pelo que quer.
A maior lorota reproduzida é a que tenta estereotipar feministas, numa clara intenção de fazer com que mulheres não lutem por direitos que são dados de mão beijada aos homens e aceitem ser uma maioria encolhida, entorpecida numa incapacidade inventada culturalmente e que nos é empurrada goela abaixo desde que damos nosso primeiro suspiro no mundo. Não fossem as feministas, hoje nem votaríamos, nem estudaríamos, nem trabalharíamos, nem teríamos conta em banco, carro, nem poderíamos dar qualquer passo em nossas vidas sem ter que pedir permissão para algum homem a cuja autoridade estaríamos sujeitas.
Então o dia internacional da mulher é data de felicidade pela constatação do quanto avançamos quando nos unimos, mas é também de tristeza por ver o quanto ainda nos falta para sermos reconhecidas como cidadãs plenas como os homens já são desde sempre.
Que esta data sirva para que mais e mais mulheres despertem para a realidade que nos é imposta e passem a dar as mãos para que a igualdade entre os gêneros seja efetivada em todos os setores da sociedade. Aí sim teremos um 8 de março de extrema felicidade.