Futebol é muito passional e isso às vezes torna o uso da razão um exercício de muita dificuldade. Entretanto, tal realidade não pode servir de justificativa para que os que formam a imprensa esportiva se entreguem de corpo e alma à torcida puramente.
Não faz muito tempo, o ABC recebeu em seu estádio o Sampaio Corrêa para decidir a vaga na final da Copa do Nordeste deste ano, cujo troféu ficou mesmo nas mãos maranhenses. Naquele jogo, uma torcida enfurecida, de uma hora para a outra, resolveu depredar o estádio, invadir o campo, agredir o goleiro do time maranhense com um tapa e um dos auxiliares da arbitragem atirando-lhe várias pedras de gelo. É bem verdade que um pênalti fora marcado, mas essa bestial reação chegou muito tempo depois.
Só no outro dia descobri o motivo após relatos no Twitter e uma entrevista de um dirigente do ABC: um comentarista e um comentarista de arbitragem de uma das rádios de Natal teriam dado chilique com o pênalti (bem marcado, como as imagens do Esporte Interativo mostraram para todo o Brasil), afirmando categoricamente que a falta teria ocorrido fora da área. Dizem que o chilique foi grande, mas aí eu nem posso dizer se foi mesmo porque não ouvi diretamente, apenas por ouvir dizer.
Na 14.ª rodada da Série C, o ABC recebeu o Confiança no mesmo Frasqueirão. Imagino que as equipes das rádios tenham sido as mesmas, já que, em Natal, apenas o ABC se mantém em atividade profissional. O mesmo Esporte Interativo transmitiu por seu aplicativo a partida, que foi disputada ontem. A exemplo, do jogo contra o Sampaio, o placar ainda marcava 0x0 quando o árbitro resolveu marcar um pênalti exatamente na mesma grande área do pênalti relatado acima.
Mas muitas coisas foram diferentes. Primeiro, este foi a favor do ABC. Segundo, o atacante alvinegro Luan não foi tocado por pessoa alguma de carne e osso ao seu redor quando desabou na área. Ou seja, o pênalti foi daqueles tipo Mandrake, personagem que fazia mágica nos quadrinhos nos anos 80. Ou ainda um fantasma, ou alma, ou espírito ou entidade, a depender da crença de cada um, tenha nos pregado uma peça, derrubando o jogador abecedista sem que imagem alguma captasse a obra. Terceiro, não se ouviu "piu" a respeito do flagrante erro da arbitragem. Nenhum chilique do pessoal da imprensa daqui. Logicamente, não esperaria que a torcida do ABC fosse quebrar o estádio por um erro da arbitragem que lhe favoreceu. Não é do feitio do futebol brasileiro (na verdade, é uma questão de nação mesmo, mas isso fica para outras análises) celebrar o fair play. Afinal, por aqui, malandro é malandro e mané é mané.
Desde o triste episódio do jogo contra o Sampaio que eu me pergunto se essas pessoas que incitaram gratuitamente a violência em nome de torcer por um time de futebol dormem direito à noite. Um dos envolvidos talvez até durma porque escreveu em momento posterior que mantinha sua posição de que o pênalti daquela noite não existira, num comportamento típico dos que sofrem de absoluta ausência de humildade. Errar é humano. Todos erramos. Muito. Diariamente. O que fazemos a partir do erro é que traça a diferença entre sábios, aqueles que em tudo aprendem algo, e tolos, os que têm certeza de que são imunes ao erro. Assim é a vida.
Que fique claro que não defendo o chilique. Profissional algum, seja de qual for a área, pode se entregar a um passionalismo doentio no exercício de seu ofício. Devemos sim fazer tudo por e com amor, porém dentro do que a razão apreendeu/apreende. Entretanto, se o chilique foi desencadeado pelo tal erro da arbitragem - que não ocorreu -, era de se esperar que uma nova crise tivesse ocorrido por ocasião do jogo de ontem, com uma evidente injustiça ocorrida em campo.
Mas vai que o pessoal aprendeu com o erro! É possível. Daqui para a frente, nada de chiliques, somente análises racionais. Neste caso, como explicar o silêncio sepulcral em relação ao pênalti autoinflingido de Luan?
Quem souber, por favor, me responda.