Já abordei várias vezes, embora indiretamente, esse tema por aqui. Alguns treinadores criam identidade com um clube e isso é benéfico para ambos, especialmente porque uma longa relação tende a dar mais frutos. É claro que, no Brasil, essa identidade é ainda permeada por muitas idas e vindas, com direito a longas pausas. De todo jeito, cito rapidamente Carlos Alberto Silva e Guarani (fui longe...), Telê e São Paulo, Muricy e São Paulo, Tite e Corinthians, Roberto Fernandes e América, que são os mais firmes na minha memória.
Essa identidade firma até o jeito de jogar da equipe. Alguém imagina, por exemplo, um São Paulo retranqueiro ou um América sem ofensividade? Não combina. A torcida não aguenta por muito tempo e o nível de exigência sufoca qualquer caminho em outra direção.
O UOL publicou hoje uma entrevista interessantíssima com Argel Fucks, ex-América, atual treinador do Internacional de Porto Alegre. Argel demonstra ter consciência de como essa identidade, muito em falta no futebol brasileiro em geral, é importante para clube e treinador e teve coragem de riscar outros clubes de sua lista em nome dela. Vale a pena conferir seu posicionamento.
O planejamento de 2016
Primeiro você faz um projeto e ele engloba diretoria, comissão técnica... O Internacional precisava de uma reformulação, ela estava atrasada. E por jogarmos só Gauchão e Primeira Liga, ganhamos o tempo necessário para rejuvenescer a equipe. Esse não é um pensamento só meu, é do clube. Nós apostamos na base, subindo muitos garotos e dando confiança a todos eles. Conseguimos dar padrão na parte técnica e tática, dar uma melhorada na parte física. Esse era um problema crônico, no ano passado faltou a preparação física ideal. A gente conseguiu melhorar em todas as áreas. Fizemos um time mais competitivo, veloz e agressivo. É um time que joga um futebol com transição mais rápida. Claro que não estamos no nível ideal, temos que crescer. Mas o caminho é esse... (...) Estamos entre 60 e 70% daquilo que podemos render. Os jogadores sabem a forma de jogar, os jogadores que temos são versáteis e nos dão muitas possibilidades. Temos dois volantes e depois deles, podemos variar sempre.
Sobre as mudanças táticas do Inter
Primeira coisa é que você não aprende nada sobre futebol em livro. Futebol você aprende se for ver, se participar. Estive em Portugal, vi o que eles estão fazendo por lá e conversei com várias pessoas. Mas o que difere este ano do outro é tempo. Eu fiz 10 jogos seguidos, logo que cheguei, com três dias de descanso entre eles. Não tinha como trabalhar nada. Nada. A grande diferença não é que fui estudar futebol, eu sou treinador há oito anos. Passei por 15 clubes antes de chegar ao Internacional, passei por vários estágios. Ganhei do Inter com São José, Figueirense... O meu trabalho foi que me trouxe aqui. Mas para qualquer coisa, é preciso tempo. É preciso tempo para dar padrão, criar modelo de jogo. Com o tempo, aí é possível programar trabalhos e formar trabalho duradouro. A única diferença é o tempo.
Esse ano nós conseguimos fazer trabalhos diferentes. Agora eu conheço a comissão técnica e sei que posso delegar tarefas para os auxiliares. Não preciso me desgastar em todos os treinos, o Odair, Galego e André conseguem comandar trabalhos bem. (...) Ano passado a gente chegava 30 minutos antes do treino. Agora chegamos 1h30 antes e planejamos tudo. Planejamos cada minuto do treino, a semana inteira.
Sobre seu trabalho ser subestimado
Não me preocupo com isso, sinceramente. (...) Sei de onde saí, tenho convicção. Venci como jogador assim, estou vencendo como treinador assim. (...) A minha diretriz, a minha forma, não vou mudar. Eu sou o mesmo quando ganha, perde ou empata. Não mudo com os jogadores, com a imprensa. Com ninguém. A forma que uso me fez vencer mais do que perder, então tem seu valor. Mas não me apego. Se achar outro jeito que me faça vencer mais, vamos lá.
Sobre o melhor time do Brasil na atualidade
(...) O Corinthians continua jogando bem. O Corinthians criou uma identidade, essa é a verdade. Soma as duas passagens do Tite aí, soma. Dá quase cinco anos. O Corinthians tem um jeito definido de jogar futebol e ninguém mais no Brasil tem isso. É o jeito do Tite. Todos os funcionários conhecem ele, todos os jogadores, a diretoria. Torcedor. Isso ajuda a criar identidade de trabalho. E isso só vai se conseguir com três, quatro, cinco ou sete anos. Me lembro do Manchester United com o Alex Ferguson. O Barcelona e sua identidade. O Atlético de Madri do Diego Simeone. Jorge Jesus no Benfica, Mourinho no Porto e no Chelsea.
Se aceitaria convite da Seleção Brasileira
Não. (...) Não tenho vontade nenhuma de treinar a Seleção Brasileira. (...) Nunca me fascinou e acredito que nunca vai ter isso. Nunca foi meu objetivo, meu desafio. A Seleção Portuguesa e o Benfica me fascinam. A Seleção Brasileira não. Mas agora estou muito feliz, estou em um clube de ponta do Brasil. Pretendo renovar meu contrato, que vai até dezembro. Pretendo criar uma identidade com o clube. Ficar quatro ou cinco anos no Inter, fazendo mais ou menos aquilo que o Tite fez no Corinthians. Criar identidade do treinador com a equipe e seu jeito de jogar. Aí, no futuro, quem sabe eu possa treinar em Portugal. Mas claro que para chegar lá, preciso ganhar um Brasileirão, Libertadores. Tenho vontade muito grande de jogar Libertadores como treinador. Acho que o perfil da Libertadores vai se encaixar demais no meu perfil de treinador...
Se quisesse sair do Inter, já poderia ter saído. A partir do momento em que você trabalha bem, em um clube gigante como o Internacional, tem reconhecimento. Já recebi convites de times de ponta [Fluminense confirmou convite], neste ano, e recusei. Não pensei em momento algum na hipótese. Comi o pão que o diabo amassou para chegar aqui. E se sair, não tem problema algum também, vou ficar menos de 10 dias desempregado. Mas receber contato é bom, significa que existe uma boa imagem do seu trabalho. Isso dá confiança maior de seguir em frente.