Pelé existiu no mundo muito antes de eu pensar em existir. Muito antes até do futebol existir para mim. E este texto é sobre isso.
Na minha inocência da primeira infância nos anos 80, lembro de uma musiquinha que eu e minhas e meus colegas de jardim de infância cantávamos com a maior diversão para a época: "Criança feliz/ Quebrou o nariz/ Foi para o hospital/ Tomar Sonrisal/ Se eu fosse Pelé/ Tomava café/ Se eu fosse rainha/ Tirava a calcinha...". Mesmo com versos tão horrorosos, foi aí que Pelé se impregnou na minha memória afetiva.
Era ligar a TV para ver Os Trapalhões e achar - domingo sim, domingo não - uma referência a Pelé como rei do futebol. Em outros programas, lá estava ele exaltado como celebridade máxima do futebol.
Eu já gostava dele de graça, sem nem saber a realidade de seu talento.
Para que se tenha uma ideia do que o futebol representava para mim em tão tenra idade lembro também que sempre que me perguntavam por que time eu torcia eu nem entendia a pergunta. Houve ocasião em que respondi que torcia para Vasco, Botafogo, Flamengo e Fluminense - isso tudo numa mesma resposta e sem ter ideia de onde esses times eram. Eu nem gostava do horário chato do sábado à tarde na Globo em que era só gente correndo num gramado com outras tantas pessoas gritando num estádio, prova definitiva que Pelé existiu mesmo para mim muito antes do conceito de futebol.
Havia uma revistinha em quadrinhos que trazia o Pelezinho como personagem e chegava às minhas pequeninas mãos vez por outra e ajudou muito na associação de Pelé com o futebol.
Pelé também foi o namorado de Xuxa, uma das maiores referências da infância da minha geração. Para o resto do mundo, era Xuxa que era a namorada de Pelé.
À essa altura, Pelé já era sinônimo de talento em qualquer área e passou também a indicar o talento para driblar/levar qualquer pessoa na conversa. "Fulano é um Pelé" apontava um elogio e ao mesmo tempo um alerta para não ser feito de besta.
Fui crescendo e tomando consciência do por quê da idolatria por ele. Os mil gols, na verdade o milésimo gol repetido vez por outra na TV e a homenagem aos pobres e às crianças contribuíam para minha admiração. Depois vieram os gols na copas, os lances, a comemoração característica.
Chegou a torcida pela seleção brasileira masculina nas copas do mundo e América. Novos nomes foram surgindo (Taffarel, Branco, Romário, Careca, Dunga, Ricardo Rocha, Ricardo Gomes). E sempre a referência (e também a reverência) do mundo para o futebol era Pelé.
Já na adolescência, prestes a pisar nos EUA pela primeira vez e ainda mais num ano de copa, me obriguei a entender de vez o que era o futebol. O mundo todo imagina que toda brasileira e todo brasileiro ama o futebol e eu não poderia perder essa oportunidade de integração no novo país (eu gostava mesmo era de basquete). Naquela máxima de que não gostamos do que não entendemos, bastou dominar a regra da tal linha do impedimento para enfim virar uma brasileira completa no conceito que o mundo tinha.
Essa copa (1994) foi a que trouxe Pelé como comentarista da Globo. Era criticado por seus comentários. O rei terminou eternizado na linda imagem em que aparece pulando e chorando abraçado a um Galvão Bueno enlouquecido pela conquista da copa e que gritava "É tetra! É tetra!". Esteve em campo nas três conquistas anteriores e 24 anos depois comemorou no estádio, na área reservada à imprensa, a quarta conquista brasileira contra a Itália de outros pesadelos.
Pelé era o rosto de várias propagandas no Brasil e no mundo. Era o rei, exaltado nos quatro cantos do planeta Terra. Futebol era e é Pelé, como foi para mim desde o início.
Usou sua influência para permitir a libertação dos jogadores brasileiros de um sistema que os transformava em mercadoria de compra e venda. Daí nunca ter recebido dos cartolas tupiniquins a dimensão que lhe cabia. Vejam que o Santos, seu único clube no Brasil, nunca aposentou a camisa 10 que virou sinônimo de craque do time, justamente pelo rei ali formado.
Há também detalhes não tão louváveis em sua vida, como a pendenga para reconhecer uma filha, embora esse reconhecimento enfim tenha saído. Existe ainda um certo ressentimento por não ter levantado mais a bandeira antirracista. Talvez a época tenha sido uma barreira intransponível para ele. Cada pessoa sabe de suas próprias circunstâncias. De todo jeito, fez o mundo inteiro reverenciar um preto com seu talento inquestionável e isso não deixa de ser uma forma de quebrar barreiras.
Edson Arantes do Nascimento morreu hoje; Pelé não. Ele seguirá como sinônimo de futebol, de talento, de celebridade exaltada pelo mundo por tantas décadas, de pessoa preta que brilhou diante do racismo e por isso tudo jamais deixará o imaginário coletivo. Afinal, a genialidade sempre eterniza.