Durante quase dois anos, fiz minha contagem a respeito da pandemia. Talvez menosprezando a força reacionária que resolveu se instalar entre nós, ou mesmo exacerbando uma veia otimista, preferi chamar aquilo tudo de "recomendação de recolhimento domiciliar". Na verdade, era o que era. Nunca tivemos lockdown. E eu acreditava que todo mundo seguiria as recomendações direitinho e passaríamos rápido por tudo aquilo, no máximo em um mês.
Mas não foi bem essa a história da pandemia por aqui. Como professora, em uma semana eu estava de férias, logo após, demitida. Como advogada, um novo mundo de comunicação por WhatsApp e de muita incerteza de procedimentos e financeiramente se abriu.
Passei a ser a única a me arriscar nas saídas ao supermercado. Escolha própria. Eu me enchia de tristeza com as ruas quase que vazias. Perdi as contas de quantas vezes chorei no carro na ida e na volta. Depois de um tempo, comecei a temer pela saúde mental de quem nem esse risco de ir ao supermercado enfrentava. Eu, Janaina e mamãe começamos a fazer caminhada arrodeando o quintal e atravessando a casa.
Para quem sempre adorou sair para comer, essa opção estava absolutamente descartada, inclusive quanto a pedidos para entrega em domicílio. Não recebíamos ninguém, nem o entregador da água mineral.
Com poucas semanas, percebi que não daria para comprar ($$$) apenas no maior supermercado (escolha baseada na maior capacidade de circular o ar e pelos procedimentos de higienização). Passei a frequentar 3 semanalmente, sendo um deles apertado demais para os padrões da pandemia. Sufoco.
Sentia uma raiva absurda de quem não usava a máscara direito, de quem não respeitava a distância de 1 metro, de quem saía de casa sem motivo (segundo a minha própria análise), de quem pregava contra as medidas recomendadas pelos epidemiologistas. Essas pessoas prolongavam o sofrimento de todo mundo. Depois passei a compreender que viver/morrer também é uma escolha e se essas pessoas preferiam a ilusão de que não havia vírus, de que remédio para verme resolvia e de que as medidas para conter a transmissão eram as causadoras da crise econômica, não o vírus, eu não podia resolver as coisas para elas, e sim me proteger (inclusive mentalmente), respeitar a ilusão alheia e deixar que a realidade as acordasse eventualmente ou não, mas nós aqui sabíamos exatamente o que queríamos: escapar da dor de uma contaminação e suas possíveis consequências permanentes.
O desarranjo do estresse nos trouxe todo tipo de alergia surgida do nada. Num dia meus lábios inchavam. Noutro, era um dedo da mão. Noutro, o do pé. Noutro, uma crise de asma acometia Janaina, que se descobriu alérgica e asmática num dia desses, passando a fazer parte do clube a que pertenço desde os 14 anos. As crises de cefaléia tensional se sucediam.
A dieta ficou desorganizada para que a cabeça não pirasse.
Janaina foi minha psicóloga em inúmeras ocasiões, acalmando meu coração, que vivia com medo do que o futuro poderia trazer e até do que ele poderia não mais trazer. Sempre admirei sua resiliência.
O sonho da vacina parecia muito distante, ainda mais com um presidente descaradamente negacionista e com traços de admirador inconteste da morte, tenha ela a origem que tiver.
Por aqui, víamos com alegria e também com inveja os países avançando rapidamente na vacinação e derrubando momentaneamente a obrigação de usar máscara.
Quase um ano depois do início oficial da pandemia no Brasil, a vacina chegou para a população brasileira. Parecia que somente idosos acima de 80 anos seriam imunizados. Os outros, somente se fossem idosos com comorbidades. Ninguém apontava um planejamento, uma organização. Ficamos ao "Deus dará". Lembro de ter ido ao cardiologista em março do ano passado e ter pedido um laudo apenas da condição de mamãe porque não havia qualquer indicação de que a vacinação avançaria para quem não era idoso, mesmo com comorbidade. 2 meses depois, a surpresa de ver a vacinação chegar para as outras pessoas, desde que com comorbidade. A luta por um laudo esdrúxulo quebrou a continuidade da vacinação. Caiu a exigência. Seguimos a passos lentos vacinando todo mundo por idade.
Nunca imaginei chegarmos ao fim de 2021 completamente vacinadas e até tendo recebido a 3.ª dose (dose de reforço). Escapamos umas 2 ou 3 vezes de contaminação mesmo tendo estado em contato com pessoas com teste positivo, inclusive em ambiente sem qualquer ventilação natural (nossa seriedade em relação ao uso da máscara sempre nos salvou).
Completar o esquema vacinal de mamãe, a levou de volta à fisioterapia tão necessária. Para mim e Janaina, esse fechamento chegou mais tarde, mas já nos permitiu enfim receber e abraçar família e amigas(os) em casa para termos o mínino de entretenimento de volta. Também passamos a frequentar locais com ventilação abundante até para fazermos refeição.
Mas essa caminhada lenta da vacinação impediu que interrompêssemos de vez a transmissão no Brasil. O vírus seguiu fazendo a festa. No mundo, então, o descompasso da vacinação entre os países promovia/promove o espetáculo de surgimento de variantes. O alfabeto grego quase foi esgotado e isso porque somente as variantes que se destacavam/destacam recebiam/recebem nomes.
A última, ômicron, não respeitou nem quem estava vacinado, embora a vacina tenha evitado mortes e manifestações graves da doença trazida por essa variante altamente transmissível.
Até por falta de pessoas para contaminar, a Covid nos deu paz como nunca antes havia feito agora em março de 2022, e assim o uso obrigatório de máscaras em locais fechados caiu em Natal, o que me fez encerrar a minha contagem. Enfim, entramos mamãe, Janaina e eu num shopping sem máscara para almoçar, algo que parecia muito distante mesmo no fim de 2021, e um misto de emoções nos dominou: alegria, medo, sensação de estarmos nuas sem as máscaras.
Pelo menos 2-3 meses de relativa tranquilidade nós teremos a partir de agora. E se não surgir uma variante ainda mais transmissível do que a ômicron (o que depende muito da vacinação e das pessoas seguirem as restrições quando elas forem impostas), estaremos muito mais perto do fim dessa agonia no mundo do que podíamos imaginar há 2-3 meses.
Ressalto que não mudei no acompanhamento da pandemia mundo afora. Aprendi a observar os números de novos casos e de internação para decidir sobre reuniões (realizadas com ventilação natural) e até sobre o uso da máscara em qualquer local. Mas vou me permitir experimentar esse alívio que começa a nos trazer para uma outra realidade, em que a vida vai seguindo um pouco mais próxima do que era antes, embora nunca mais sejamos como já fomos. A máscara, por exemplo, veio para ficar para nos proteger de surtos de vírus respiratórios, não tenho dúvidas.
De tudo, e até agora, o que me resta é um grande alívio. Também me sinto grata por tudo, sem exceção. Superamos as dificuldades aqui em casa sem grandes perdas (vida, saúde), confirmamos a força dos nossos vínculos afetivos e aprendemos a separar o que é realmente essencial no nosso dia-a-dia. De nenhuma medida tomada eu me arrependo, afinal, chegamos até aqui sem contaminação. Espero que sigamos assim neste novo tempo.