O último dia do I Congresso Digital da OAB começou com a conferência magna da historiadora Mary Del Priore com tema "Resiliência e violência contra a mulher na história do Brasil".
Antes da palestra começar, no entanto, fui presenteada - se é que isso pode ser chamado de presente - com um exemplo de como a violência contra a mulher sempre esteve normalizada entre nós.
Há 3 praças na rua em que moro que estão em processo de limpeza pelos funcionários da Prefeitura de Natal, uma delas bem em frente à minha casa
Logo cedo, dois desses funcionários entraram numa certa discussão a respeito do trabalho de um deles. Para quem não sabe, o Mirassol é de um silêncio tão reinante, pelo menos na minha rua, que qualquer barulho de carro passando chama a atenção, imagine vozes exaltadas.
O destaque ficou para quando um deles, provavelmente o que estava tendo sua atenção chamada, falou: "Ei, não venha gritar comigo porque eu não sou sua rapariga, não!". Não sei se devo pedir desculpas pelo termo utilizado para se referir a uma mulher porque, na verdade, originalmente ele nunca foi um termo ofensivo. Tanto é verdade que ele é utilizado corriqueiramente pelo povo português como feminino de rapaz.
Também não foi o uso do termo aqui ofensivo que me chamou a atenção. Passei longe disso. É que a linguagem utilizada revela o que trazemos na nossa alma como sociedade. No afã de afastar o tom de voz que lhe parecia humilhante, o trabalhador em questão, sem pensar, apenas reagindo, delineou que somente uma situação seria normal para aquilo acontecer: se o outro homem estivesse a gritar com sua mulher.
Leva algum tempo para percebermos o mal que palavras podem causar, daí a luta crescente para que termos sejam aposentados e outros sejam incorporados em busca de uma sociedade menos apegada a preconceitos e mais aberta à inclusão e à representatividade de absolutamente todos e cada um de seus componentes, tão bonitos que somos em nossas individualidades e diferenças.
Não, não é aceitável que um homem grite com a mulher com quem se relaciona. A humilhação não é aceitável qualquer que seja a justificativa, pior ainda se apoiada numa questão de gênero num país que vive uma verdadeira epidemia de violência doméstica.
O deslize do trabalhador humilhado apenas ressalta o tamanho da luta que temos como sociedade para expurgar os estereótipos que impedem nossa evolução.
Há pouco mais de uma semana escrevi sobre como tratamos as mulheres vítimas de violência na hora em que elas denunciam os crimes.
Para quem acha tudo isso exagero, dê uma olhada ao seu redor. Aliás, se trocássemos os trabalhadores da discussão por trabalhadoras, quanto tempo levaria para que alguém apontasse a falta de sexo como causa daquela "histeria"?
Sim, a boca revela a alma. Façamos uma reflexão das nossas palavras para não reforçarmos o que queremos extirpar.