A vida de Ursula foi cheia de histórias para contar, de desafios a superar. Tudo começou com a avó dela, Lily. Ela era criada por vizinhos que alugaram uma das casas coladas na que vivemos. Eram de outro estado. Num belo dia, eles foram embora e Lily ficou.
Aqui em casa nunca fomos muito de gatos. Éramos pessoas de cachorro (tínhamos pastores alemães) e olhe lá porque mamãe não gostava da ideia de bichos de qualquer espécie. Só que o destino prega peças e Lily e mamãe se afeiçoaram mutuamente. Lily não morava aqui, mas sabia onde e quando receber carinhos e comida, apesar de ser a única gata que vi na vida que não gostava de receber carinho. Era de lua.
Aí Lily teve cria antes de ser castrada e uma dos filhotes virou o xodó de mamãe (sim, eu seguia uma pessoa de cachorro, não de gato). Shane, mãe de Ursula, era o oposto de Lily: dócil demais, adorava um carinho. Também adorava entrar em casa para receber comida e carinho.
Shane também teve cria. No meio das fofurinhas, Ursula veio ao mundo. Todos os seus irmãos foram embora. Ela ficou. E ficou cheia de histórias para contar.
Primeiro, ainda filhote, vivia entrando no motor dos carros daqui. Um dia seguiu com a minha irmã até a oficina. Ao abrir o capô, o mecânico recebeu de volta um miado chateado de quem teve o sono perturbado. Lá veio minha irmã trazer a gata de volta antes do serviço ser devidamente realizado.
Outro dia, fui passar um domingo na casa do meu irmão, lá em Cidade Verde. Na volta, à noite, um engarrafamento horroroso na BR-101 em frente ao posto de gasolina em Neópolis por causa de um acidente. No anda e para, escutamos um miado vindo do motor do carro. Não era possível que fosse Ursula porque havíamos conferido o motor antes de sair de casa, ainda de manhã. Outro miado e era ela mesmo. Desceu do motor e agora circulava na BR-101. Janaina ainda desceu para tentar pegá-la, mas ela ameaçou correr para a outra mão da BR-101, onde o trânsito fluía normalmente e onde fatalmente seria atropelada. Janaina desistiu e voltou para o carro. Isso se deu por volta das 18h30.
Cheguei em casa de coração partido. O relógio já se aproximava das 23h quando meu coração me impeliu a tentar encontrá-la nos arredores do posto naquele momento mais calmo. Janaina topou na hora.
Quando chegamos perto do posto, baixamos os vidros do carro e o coloquei para rodar abaixo dos 20 km/h. De repente, um miado alto, como um grito, surgiu na calmaria da noite avançada do domingo. "Pare o carro", Janaina gritou. Outro miado e identificamos de onde vinha: um cercadinho de construção dentro do posto. Não sei como, mas Ursula reconheceu o carro que fazia pouco tempo havia sido comprado e miou com toda a sua força de filhotinha para que fosse resgatada. Assim que Janaina chamou, ela veio. E voltei para casa trazendo a gata e minha paz de volta.
Talvez por todos esses traumas, ela tivesse muito medo de qualquer barulho de moto, carro, especialmente o do lixo, e vivesse a se esconder quando ouvia algo do gênero. Numa dessas, desapareceu sem deixar vestígios. Teria morrido ou alguém se afeiçoou por aquela fofurinha? Ninguém sabia.
Alguns dias depois, ao pintar uma parede externa, Janaina começou a ouvir um miado insistente, desesperado de um gatinho, sem saber de onde vinha. Parou tudo e foi investigar. Descobriu que vinha de um arbusto de espinhos do início da rua. Correu a buscar um prato de leite para convencer o gatinho a deixar o arbusto, já que era impossível ver o que estava dentro sem se machucar. O pratinho de leite e um chamado com carinho trouxeram o gatinho para fora. Na verdade, gatinha. Era Ursula em mais um resgate!
A felicidade foi geral e eu comecei a crer que gatos têm mesmo 7 vidas (9 nos EUA). Ou pelo menos Ursula tinha.
Ainda sem viver definitivamente lá em casa, ela passava a noite no telhado e os dias circulando dentro de casa. Engraçado que ela só descia do telhado depois de muito miar para que deixássemos a porta da frente totalmente aberta para que ela pudesse descer e entrar logo, sem pausas. E ai de nós se demorássemos a abrir a porta... O miadeiro era sem fim!
Teve uma cria, mas era tão novinha que não sabia o que fazer com seus gatinhos, que terminaram morrendo. Conseguimos levá-la para castração e ela ficou umas noites conosco para cuidarmos dos pontos. Sua mãe, Shane, não teve a mesma sorte. Fugiu da jaulinha e pulou do carro (em movimento) quando estávamos a caminho da clínica para a castração. Deixou uma senhora marca no painel do carro. Deve ter se machucado no movimento e desapareceu lá de casa (gatos se escondem quando doentes). Apareceu morta na casa de um vizinho. Que tristeza!
Lily, que sobreviveu à morte da filha, veio a ficar bem doente já no finzinho de sua vida. Até o veterinário se comoveu com sua situação e fez a eutanásia sem me cobrar nada.
Quanto a Ursula, anos depois a idade foi chegando (sim, ela chega até para os gatinhos) e Ursula começou a ter dificuldade para descer do telhado. Miava, mas só abrir a porta já não era suficiente. Janaina tinha que ficar numa escada reassegurando sua descida. Um dia nem isso serviu. Quase que Janaina arrancou-lhe o rabo para conseguir retirá-la de cima da casa. Nesse dia decidi que ela moraria de vez aqui. Porta trancada à noite para que não saísse mais, o que de certa forma deixou-lhe chateada. Sempre dava um jeito de fugir e passear na frente da casa e até na rua, mas já não conseguia mais subir o muro. De vez em quando, acabava embaixo do carro da vizinha. Aproveitava cada estada de Janaina lá fora para seus passeios.
Começou a apresentar uma certa desorientação pela idade. Às vezes, miava desesperada no meio do quintal como se estivesse abandonada. Lá íamos nós "resgatá-la". Saía por uma porta e não sabia mais voltar por ela. Tínhamos que abrir outra para ela entrar. Com a chegada de uma outra gatinha aqui, Honey, que morreu precocemente, atropelada, voltou a demonstrar uma carência típica de filhote. Queria estar conosco o tempo todo, subindo em sofá, cama e até deitando encostadinha em qualquer uma de nós.
Esse comportamento foi reforçado com a chegada da intrometida Chamusca. Depois passou a buscar outros pontos da casa para ficar só. Talvez fosse a maldita doença dando sinais que infelizmente não captamos.
Nunca nos deu uma mordida, nem mesmo na fase final, em que eu tinha que enfiar remédios e suplementos de todos os tipos goela abaixo. Saía de fininho quando eu me aproximava, ciente da tortura prestes a começar. Aquilo me maltratava mais ainda.
Quando vi que a internação era mesmo inadiável, temi que não a visse mais. Foi o motivo de minha exposição nesta pandemia, pois lhe visitava todos os dias, de manhã e à tarde.
Nos primeiros dias, uma depressão coletiva aqui em casa pela piora de sua saúde. Tínhamos certeza de que morreria. Depois melhorou. Melhorou a ponto de pular, miar e vir ao nosso encontro na jaulinha do hospital, como se pedindo para ir conosco para casa. Novos exames apontaram melhora numa coisa e piora noutras. Mas ela estava tão melhor que eu tive a certeza de que a traria para casa na segunda-feira.
No domingo, sem direito a visitas, recebemos telefonema informando da piora à tarde. Ligamos novamente à noite e guardamos a esperança de que os procedimentos dessem resultado no dia seguinte.
Hoje contei as horas para a visita. Na chegada, primeiro falamos com a veterinária, Dra. Romeika Hermínia, e ali já sabíamos que não havia mais saída. Ao chegar ao leito, Ursula estava com um olhar absolutamente perdido, sem reação. Não deixaríamos aquele sofrimento se estender mais. Acompanhamos toda a eutanásia que cessou a batalha já perdida. Como lutou Ursula! Terminei mesmo por trazê-la para casa hoje, mas tão somente para providenciar sua nova morada.
Já fiz e refiz as contas e tenho certeza de que ainda restavam algumas vidas a Ursinha. Não tenho a quem reclamar pelo engano. Resta-me a impiedosa dor da ausência.