Desde ontem pulula na imprensa e nas redes sociais uma tal liberação dos clubes de futebol masculino do RN por parte da Federação Norte-rio-grandense de Futebol para a retomada dos treinamentos. Não vi o documento oficial, tão somente a notícia publicada pela FNF em seu site, e nela consta expressamente que "a denominada flexibilização do isolamento social, (sic) será sempre decorrente de normas públicas e, (sic) submetida à avaliação dos clubes filiados e demais atores envolvidos no futebol tais como: FNF, TJD, da arbitragem, dos atletas e treinadores." (sic)
Então, de onde foi que tiraram que os treinamentos foram liberados? Seria o problema de que agora o presidente do Brasil explicitou que ler e interpretar são atividades diversas e, portanto, muito difíceis?
São os governos estaduais que vão determinar o momento de flexibilização do isolamento social. Essa determinação será dada a partir das diretrizes provenientes das autoridades de saúde, tanto da OMS, como do Ministério da Saúde e das Secretarias de Saúde país afora.
A FNF, entidade privada, não tem poder para revogar um decreto oriundo de ente oficial, como é o caso do Decreto n.º 29.634 de 22 de abril de 2020, que prorrogou até 5 de maio de 2020 as medidas de saúde para enfrentamento da Covid-19 previstas no Decreto n.º 29.583 de 1 de abril de 2020, cujo art. 11 expressamente traz:
"Art. 11. Estão suspensas as atividades coletivas de qualquer natureza, públicas ou privadas, incluindo eventos de massa, shows, atividades desportivas, feiras, exposições, reuniões de pessoas ou de pessoas em seus veículos, como carreatas, passeatas e congêneres.
§ 1.º As atividades coletivas de que trata o caput que tenham sido autorizadas pelo poder público até a data de publicação deste Decreto deverão respeitar as recomendações da autoridade sanitária, especialmente o distanciamento mínimo de 1,5 m (um metro e meio) entre as pessoas, a limitação de 1 (uma) pessoa para cada 5 m² (cinco metros quadrados) de área do estabelecimento e público não superior a 20 (vinte) pessoas.
§ 2.º O disposto no caput não se aplica às atividades coletivas destinadas às medidas de combate ao novo coronavírus (Covid-19) ou qualquer outra atividade de saúde pública, como campanhas de vacinação."
Em que parte o decreto, portanto, autoriza o futebol a realizar treinamentos? Como realizar um treinamento envolvendo menos de 20 pessoas e com distanciamento de 1,5 m entre elas?
Ontem, triste dia em que o número de casos no Brasil superou o da China e acumulamos o maior número de mortes em 24h até então, o Ministério da Saúde explicitou que, ancorado nos picos de problemas respiratórios agudos a cada ano no Brasil, o pico da Covid-19 no país é aguardado para entre as semanas epidemiológicas 22-27. Estamos na semana epidemiológica 18.
De onde então alguém tirou que a flexibilização do isolamento social vai ocorrer quando o número de casos segue em exponencial crescimento? Os exemplos mundo afora não servem para nenhum ensinamento?
A FNF fala em discutir treinamentos a partir de 6 de maio porque o atual decreto definiu as restrições até 5 de maio. No entanto, o mínimo de bom senso na observação dos fatos que envolvem a Covid-19 traz a certeza de que as restrições serão renovadas. Afinal, com exceção do presidente Jair Bolsonaro, que manda um sonoro "E daí?" para as mortes que se avolumam a cada novo dia desta triste pandemia, as demais autoridades, sejam de saúde, sejam as outras autoridades públicas deste país, não querem carregar a pecha de um genocídio patrocinado por uma ordem do tipo "libera geral" quando todas as diretrizes apontam para a manutenção do isolamento social nas próximas semanas.
Que a FNF e os clubes discutam cenários, ótimo! Mas daí a termos um irresponsável alardeamento de que os treinamentos estão liberados e que a volta do futebol é logo ali... Isso é de uma maldade ou incapacidade de interpretar textos e fatos que impressionam até quem está acostumada a ver quase que diariamente todo tipo de ginástica na leitura de normas em busca de proteção legislativa inexistente para malfeitos.
A hora é de pararmos de brincar de negação da realidade em que estamos inseridos e abraçarmos logo com seriedade as medidas impostas pelo isolamento social para que este período passe mais rápido. Todos estamos sofrendo. Não atuar para aumentar esse sofrimento é o mínimo que se pede de todos e de cada um de nós.