Países e nações não caem em retrocessos civilizatórios da noite para o dia. Não. Há um processo que vai empurrando o limite do aceitável diariamente e se infiltrando na mente do cidadão comum sem que se enxergue o mal implantado em pequenas doses.
A pretexto de se combater um inimigo normalmente imaginário, o que é real, mas que foi alçado de forma surreal ao posto de chave para eliminar todas as mazelas, vai-se minando a base da democracia. O golpe fatal já chega em momento em que a coitada nada mais tem a lhe sustentar. Esse roteiro é velho, entretanto, muita gente ainda não o conhece, ou por falta de estudo, ou por falta de memória mesmo.
Vou falar do Brasil, mas essa onda reacionária está presente em vários lugares do mundo, comprometendo até a forte (?) democracia ocidental.
A pretexto de lutar contra as mazelas da corrupção - é só pretexto para enganar os mais fracos, como as práticas do dia a dia mostram - o Brasil anda rebaixando diariamente seu nível de civilidade. Não se ataca a corrupção, mas as instituições.
Inicialmente o problema era um único partido. Rapidamente o problema virou todos os partidos adversários. Temos corrupção? Temos. É um problema de formação de nossa sociedade, tão arraigado como o conceito de levar vantagem em tudo, o que inclui furar filas, seja no supermercado, no cinema, no banco ou no trânsito. Todavia, a ideia (errada) é que a corrupção vem de cima para baixo e, por isso, o certo mesmo é acabar com todas as instituições, como Congresso, universidades e o próprio Poder Judiciário.
Como diria Jesus, nem vemos a trave que cobre o nosso olho, mas já estamos prontos a remover o cisco do olho do próximo.
Ter só a corrupção como alvo não é suficiente. Lembro das aulas do professor Marcelo Navarro, hoje conhecido como o ministro Ribeiro Dantas no Superior Tribunal de Justiça em que ele dizia que o problema do poder é que ele se espalha. E essa é a tendência de todo aquele que detém o poder: querer sempre mais. Logo, depois que ele se espalha, é difícil contê-lo.
Nesse passo, ter só a corrupção como inimiga não é suficiente. Cria-se mais um inimigo: a ideologia. Combate-se a ideologia, como se tudo não estivesse num espectro ou outro das ideologias. Ora, combater uma ideologia é cerrar fileiras com outra, algo tão óbvio como 2+2=4...
Agora mesmo ressuscitaram o comunismo no Brasil. E nem é preciso muito para virar comunista: basta criticar qualquer dos feitos do presidente Jair Bolsonaro. Gente que votou no PT desde o tempo de Lula hoje brada um ódio aos "vermelhos". E quem sempre votou em propostas de oposição ao PT, num passe de mágica, virou vermelho de carteirinha.
Mas isso ainda é pouco. É preciso eliminar a ideologia, lembram? Então, vamos censurar o que se publica. Aplaudir pode; criticar é fake news.
Se pensar é perigoso, obviamente as artes e a imprensa serão os primeiros alvos a serem combatidos violentamente. Veículos tradicionais são achincalhados sem intervalo. É preciso desacreditar qualquer coisa que possa despertar para a realidade. Criemos um ceticismo irracional: nenhuma fonte tem credibilidade. Nenhuma. Num ambiente assim, a força dos laços afetivos ajuda a dar credibilidade àquela corrente que chegou no grupo da família e que jura que as crianças de hoje são ensinadas na escola a frequentar motéis, a passar batom, a se insinuar sexualmente.
Pronto. Outro alvo atingido: nenhuma escola presta. É preciso acabar com elas também pelo bem da humanidade.
Se escolas e imprensa não prestam, o que dizer das artes? Pornográficas, degeneradas, acabem com elas! Filmes trazem os detalhes do passado e isso é muito perigoso. Livros levam a mente a se desenvolver, numa periculosidade inaceitável para a sociedade. Quadros mostram o pensamento, mas pensar é comunista, lembram? Matem as artes.
E assim as trevas chegam. Ou voltam, porque esses períodos de escuridão aparecem na História da humanidade e a luta para superá-los levou o mundo para frente sempre, para desespero dos que gostam da escuridão. Mulheres não são mais relegadas à satisfação sexual de seus senhores ou aos serviços domésticos. Negros não são mais estocados como mercadorias. Gays não são mais mantidos dentro de armários. Todos existimos e somos iguais. Mas como saber disso se as escolas não prestam, os jornais são mentirosos e as artes, pornográficas?
O limite civilizatório no Brasil já foi afastado. O presidente mente dia sim e dia também e o decoro do cargo permanece. O presidente divulga vídeo pornográfico e as claques aplaudem seu decoro, inclusive compartilhando o vídeo de baixo calão de intuito único de acabar com o Carnaval no Brasil - as mesmas claques que defendem que um beijo entre pessoas de mesmo sexo numa revista em quadrinhos é pornografia e merece censura. O presidente defende ditaduras sanguinolentas e o decoro resta incólume. O presidente xinga a esposa de outro chefe de estado e o decoro segue intacto. O presidente ofende a memória de pessoas assassinadas num regime de exceção e tudo segue tranquilo.
O presidente desfaz de um órgão público científico de reputação internacional. Tudo certo. O presidente quer gastar mais dinheiro contratando uma empresa privada para fazer o que o renomado órgão faz. Aplausos. O presidente...
Se o presidente é assim, os ministros então...Melhor nem falar.
Lembram aquela ideia de que perfis técnicos seriam a batida para evitar a corrupção? Mas a corrupção não é problema de ideologia? Ah, então agora todos os nomeados serão evangélicos de recitar versículos bíblicos de cor. Mais aplausos. Como não pensamos nisso antes? Igrejas responsáveis pelo Estado são a solução. Bem, vimos isso antes sim, mas não veremos mais porque escolas, jornais, livros e artes em geral são mentirosos. É só torcer que a "nova" experiência vai dar certo.
E nessa batida religiosa agora um prefeito, sem a menor noção de legislação, resolveu censurar - sim, censurar - o que a Bienal pode ou não expor/vender. A cena é grotesca, com fiscais folheando livros e revistas em busca de pornografia - sim, no Brasil de 2019, um beijo é pornografia. Também já vimos isso antes, desde a Idade Média com a Santa Inquisição da Igreja (ah, essa junção de religião e Estado...) até os porões da ditadura brasileira. Mas como saberemos, uma vez que escolas, jornais, livros e artes em geral são mentirosos?
A escuridão se apresenta cada dia mais sem qualquer vergonha. Sem imprensa, sem escolas, sem artes, sem liberdade de expressão e de pensamento, caminhamos a passos largos para as trevas num processo paulatino de solapamento da democracia. Escolas, jornais, livros e artes em geral alertaram. Mas como saber se eles não mais existirem?
7 de setembro deveria ser uma data de extrema reflexão para os brasileiros: Brasil do futuro ou Brasil do passado? Trevas ou luz? Constituição ou Twitter?
Um feliz dia da independência com muita luz para todos! Viva o Brasil!