A Tribuna do Norte de domingo trouxe uma entrevista interessantíssima na seção de Esportes: Francisco Bernardes Filho, analista tático do América, função em que analisa minunciosamente os adversários rubros em relatórios repassados ao comandante técnico do Mecão. Francisco afirma categoricamente que o futebol brasileiro é fraquíssimo em termos táticos e analisa o momento do futebol tanto no Brasil como no mundo. Confira trechos dessa esplendorosa entrevista exatamente como publicados (inclusive erros):
"Você vê o jogo, analisa o adversário. Então fazendo uma análise geral da série B, existe alguma novidade em termos táticos nessa disputa?
Eu enxergo o futebol como uma coisa tática, mas aqui no Brasil as pessoas ainda querem entender o futebol como técnico. A maneira como as equipes se organizam e se desdobram dentro de campo, em cobertura defensiva, superioridade numérica no ataque e também na defesa. Tudo isso influência numa partida de futebol, além da capacidade técnica de cada jogador, que não pode ser descartado. Pesa também o poder aquisitivo das equipes, na série B os clubes que estão no topo são a dos estados com maior poder de investimento. Eles têm condições de contar com profissionais melhores e isso pesa, mas não falo apenas os jogadores, mas o pessoal que trabalha no campo como um todo.
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Você falou de ter bons jogadores e profissionais, aliando isso aos recursos. Então, no caso dos nossos clubes, como fazer que com poucos recursos a gente consiga ter essa grande organização?
Acredito que no futebol, a gestão sempre vai diferir das realizadas nas empresas. As empresas podem esperar resultados a médio e longo prazos, no futebol isso não acontece, o resultado é para ontem. A nossa cultura é essa, se o técnico perder cinco partidas vai embora e ai não se tem tempo de fazer um trabalho embasado. Nós devemos investir na formação dos nossos atletas, planejando a formação de uma equipe para quatro anos na frente. Mas ninguém quer saber disso por aqui, querem contratar jogadores e acabando a temporada vai todo mundo embora e se monta outra equipe. Temos de ter paciência na formação. É a alternativa mais viável.
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O trabalho que você desempenha é de observar o adversário e munir os treinadores com informação e palpites. Frente a isso, você não encontra muita barreira por parte dos técnicos?
O scout pode significar muitas coisas: detectar, investigar, pode ser realizado a nível de qualitativo, quantitativo, para detecção de talentos e como é uma área nova de trabalho torna tudo um tanto difícil e complicado. Porque isso? Por que você tem de intervir e, muitas vezes isso aos olhos de pessoas que não tem o mesmo entendimento que você, pode gerar alguma desconfiança. Essas pessoas podem entender que alguém está tentando se meter no trabalho deles. Mas não é isso, nossa função é analisar, identificar, tentar solucionar e dar respostas para aquilo que acontece num jogo, visando a melhoria da equipe em termos individuais, coletivos e táticos. Se não tiver entendimento da importância disso numa comissão técnica, limita o trabalho desse profissional.
Como isso é feito na Europa, você teve a oportunidade de trabalhar por lá [fez curso de treinador e pós-graduação em Portugal]?
Em relação a Europa, o trabalho aqui no Brasil ainda está engatinhando. Aqui nós ainda usamos o termo de olheiro, aquele cara que o treinador da equipe manda para investigar os adversários. (...) Na Europa não existe um profissional com esse fim específico, existe sim um departamento com vários profissionais encarregados de analisar ponto a ponto os adversários. São muitas informações desde: passe, recepção, desarmes, cabeceio, escanteio, laterais. Quem faz o quê, como costuma fazer... São variáveis que os profissionais devem dominar. (...) Nós hoje temos os melhores jogadores do mundo tecnicamente falando, mas taticamente somos fraquíssimos.
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Qual o principal erro tático que você nota nas equipes do futebol nacional?
Não sei se seria um erro tático, mas vejo a questão da organização, que é crucial para desenvoltura dentro de campo. Hoje o futebol não tem mais espaço para o centroavante pivô, aquele cara parado. Se um time jogando assim pega um adversário que force o jogo tanto em profundidade, quanto pelas laterais, esse time terá um jogador a menos. Se o treinador ainda insistir com a figura do meia armador, que só joga com a bola no pé, serão dois jogadores a menos para combater os adversários. Neste caso ele ficará em franca desvantagem. Equipes modernas, se você prestar atenção, mesmo quando ela ataca está se defendendo e vice versa. Apesar da dualidade, ela sabe que perdendo a bola no ataque, (o jogador) terá de realizar uma defesa ofensiva, ainda no campo do adversário. Ao mesmo tempo quando o time está sendo atacado, ele sabe que se der o bote no momento certo e oportuno, pode conseguir um contragolpe fatal. Os times hoje causam uma superioridade numérica de atletas no setor que perdem a bola para evitar esse tipo de situação. Sistema tático e dinâmica organizacional é que fazem o jogo fluir nos dias atuais.
Quando você fala em modelo, quer dizer exatamente o quê?
Pelo que eu vejo os clubes aqui no Brasil não tem um modelo de futebol, eles seguem uma lógica que eles trazem de muitos anos. Quando é contratado é um profissional, a equipe está investindo em um nome apenas e não num perfil de profissional que se encaixe dentro daquele que seria o modelo do clube trabalhar. Quando procuramos apenas um profissional, encontramos vários. Mas quando buscamos uma peça para ocupar um perfil de trabalho, ai sim teremos uma pessoa apenas. A incógnita sempre irá existir, não podemos antecipar se vai ou não dar certo, mas pelo menos existe um referencial, o trabalho será feito dentro do planejamento. Quando se deixa isso solto, não criamos parâmetros, o treinador chega e muda tudo dentro de um clube, tentando implantar o seu modelo de jogo e isso não se implanta do dia para noite, requer tempo. Justamente o que não temos no futebol. O modelo tem de ser trabalhado desde a base e seguindo em todos os níveis do clube. Esse é o segredo do Barcelona, Porto e Ajax, que não mudam a forma de jogar e facilita o acesso dos jovens revelados nesses clubes ao time profissional. Ele já chega sabendo o papel a desempenhar e que tipo de movimentação terá de fazer. O técnico não perde tempo ensinando coisas assim lá.
Fonte: Tribuna do Norte, edição de 12/10/14, caderno de esportes, página 2.